Baco é velhaco e enganador!

A urgência dos grandes negócios separados por muitos fusos horários impuseram ao oligarca russo um jantar rápido e frugal, constantemente interrompido por inúmeras chamadas internacionais a que ele ia respondendo, ora em russo, ora em inglês.
Do seu séquito feminino, apenas uma não era bacante, nem a cobria vison ou qualquer outra pele. Mete já estava embriagada e Estesícore exibia com agrado o corpo da bailarina que de facto era.
A não bacante que ali estava, não estando, observava tudo atentamente, enquanto em breves incursões mentais se escapava para o seu verdadeiro mundo, onde Baco não é deus, nem reina.
Baco é velhaco e enganador!
« - E o que é que tu tens a ver com isso? Foste tu que pagaste? Então cala-te!» - sentenciou o oligarca, muito irritado e já com uma ajudazinha de Baco. Contra a força sem a força da razão, a razão não retruca e…, cala-se. Assim, também se calou a voz prudente do outro lado.
O oligarca visivelmente irritado disse, para si e entre dentes: «-Este está a necessitar duma lição, tem de aprender qual é o seu lugar.»
Baco é velhaco e enganador!
Criados que se adivinhava não terem sido criados para aquilo, desdobravam-se com classe num atendimento muito selecto.
À não bacante, à não participante, embora presente, à que tudo vê, não passaram desapercebidos -enquanto ele abria mais uma garrafa- aqueles dedos esguios e elegantes do solícito e compenetrado criado que se adivinhava não ter sido criado para aquilo. Ela reparou sobretudo naquele mindinho longo e funcional, tacteante, hábil em premir e fazer vibrar… sensações e sentimentos nos limites das cordas.
- O senhor é músico? – perguntou-lhe baixinho e muito discretamente a não bacante, não participante, embora presente, mas que tudo vê.
-Sim! Sou violinista. –respondeu-lhe acabrunhado, discretamente e baixinho, enquanto despejava um pouquinho de vinho no copo dela.
Já não parecia que se conversava naquela mesa, zoava-se. As pizas não formaram lastro bastante para ensopar o néctar alteroso e abundante que por ela correu.
Baco é velhaco e enganador!
O tempo em Londres também é velhaco e enganador. Ouvia-se uma chuva copiosa que fora antecedida de inesperados trovões que troaram e atordoaram o céu e atordoaram o oligarca poderoso -que só a estas leis não escapa e nunca escapará- e atordoaram alguns dos convivas e atordoaram também alguns outros clientes.
O criado violinista que se adivinhava não ter sido criado para aquilo voltou à mesa e, ainda mais discretamente que na primeira vez, entregou um convite à conviva não bacante…, à conviva que tudo vê, àquela a quem os biliões do oligarca não fascinam, não confundem, nem cativam.
Era um convite para a estreia da apresentação em Londres, pela enésima vez, da 6ª Sinfonia de Beethoven – “A Pastoral”, de cujo elenco executante, ele fazia parte.
Baco é velhaco e enganador!
O oligarca fazia aquilo que melhor sabia: ostentava poder, riqueza e a rudeza que educação alguma ou finos modos mudariam.
Depois do segundo gole do portentoso e saboroso néctar as papilas gustativas saturaram-se e já nada degustavam.
Agora, ele e os seus convivas emborcavam vinho muito caro, honrosa excepção seja feita à não bacante que bebericou a gosto e que apenas pelo segundo gole se ficou.
Alguns convivas apenas por mero decoro não arrotavam, contudo o oligarca, alcandorado no altaneiro castelo do poder do dinheiro, a tudo se permitia, inclusive à boçalidade de arrotar!
Baco é velhaco e enganador!
Andrés Segóvia, um virtuoso executante da guitarra clássica suspendeu o concerto musical porque a sua guitarra saturou-se, na sua caixa as notas já não ressoavam com a pureza devida, soavam-lhe bêbadas. Pediu desculpa. Trocou de guitarra e mudou o alinhamento e o reportório do concerto. Explicou a saturação da guitarra com recurso à física quântica, assim é com tudo –disse- até com o palato. Riu-se!
Porque Baco não é o supremo deus deste mundo, Jesus desautorizou-o transformando a água em vinho nas bodas de Caná da Galileia para que os noivos não sofressem desonra e, disse o mestre de cerimónia: “Todo o homem põe primeiro o vinho bom, e, quando já têm bebido bem, então o inferior; mas tu guardaste até agora o bom vinho.” É sabido que o vinho satura o palato, por isso se degusta, se beberica, o primeiro e, se emborca o segundo!
Baco é velhaco e enganador!
Numa outra mesa, um indignado, conhecedor dos meios que originaram tão assombrosa fortuna dizia:
«-Nunca constou e jamais constará que alguém tenha nascido ou venha a nascer com um título de propriedade nas mãos. Nascemos nus!»
«- Mas o que tens tu a ver com isso?» – replicou-lhe a consorte, desagradada com o rumo da conversa.
«-Tenho sim! Tenho consciência e falo pelos biliões de ser humanos que não têm voz!, mas que por terem nascido na Terra também são, pelo Direito Natural, compartes na propriedade e usufruto dos bens e riquezas da Terra!»
«- Ora essa! Mas o que tens tu a ver com isso? » – replicou-lhe a consorte, agora muito mais desagradada com o rumo da conversa.
Baco é velhaco e enganador!
A não bacante, não participante, já ali não estava, estando! Ela já fazia incursões mentais, já se escapava para o seu verdadeiro mundo, onde Baco não é deus, nem reina.
O tempo em Londres também é velhaco e enganador. Ela tremeu quando ouviu os inesperados trovões que troaram e atordoaram o céu e que antecederam aquela chuva copiosa que repentinamente se abateu sobre a cidade.
O inesperado convite e os trovões transportaram-na para a sua trompa e para as recordações da sua participação na gravação sonora da 6ª Sinfonia para o grande êxito da Disney, o filme de desenhos animados –Fantasia. A sua trompa em fá e mais uma outra trompa em si bemol e os tímpanos fazem mais barulho no 4º movimento da “Pastoral” representando a tempestade, do que fazem dez trompas de Mahler.
Não é mundana a alma da não bacante, é pastora, é também música e benemérita. Está ali para angariar fundos para a ONG que representa e que tem fins humanitários – combate a fome!
Avança a hora e ela preocupa-se porque tem de ir buscar a irmã, um ser gentil atraiçoada pelas traições vida à vida com a trissomia vinte e um e, ainda tem de passar pelo hospital para trazer o marido que acaba de cumprir um trabalhoso turno de 24 horas nas urgências dum movimentado hospital londrino.
O marido não ganhará de ordenado em dois meses, metade do valor da conta daquele frugal e rápido jantar!
Baco é velhaco e enganador!
«-Tenho sim! Tenho consciência! Não existe um direito do mais forte à liberdade que sustente e legitime estes roubos e estas apropriações indevidas da riqueza comum!» – continuou o indignado.
«-A democracia é uma farsa sibilina! Ela assiste camufladamente estes roubos e torna o Direito e os Estados reféns dos homens sem escrúpulos e dos ladrões.» - disse-o sem papas na língua.
«- Cala-te por favor! Nada tens a ver com isso!» – implorou-lhe a consorte, agora temerosa e muito mais desagradada com o rumo da conversa.
Baco é velhaco e enganador!
Entretanto, a bailarina Estesícore, já enfadada, olhava disfarçadamente para o relógio. Preocupava-a a evidente e indisfarçável embriaguez de Mete, pois, outros compromissos, outras danças… muito bem pagas as aguardavam.
O velhaco e enganador Baco nem as suas bacantes protegia. Havia necessidade de Mete se embriagar…, tendo agendado um trabalho pago por avantajada carteira? – pensava e pensava… Estesícore, muito apreensiva.
Baco é velhaco e enganador!
Entre arrotos e a ininteligível zoeira, lá chegou a conta em palma folheada a ouro! Meia dúzia de pizas e quatro garrafas de vinho importaram em mais de quinze mil euros. Mas…, mas, mas…, mas desse montante, mais de treze mil euros correspondiam às quatro garrafas de vinho.
Baco é velhaco e enganador!
Mais de quinze mil euros!
Um jantar de pizas para seis pessoas e quatro garrafas de vinho!
Baco é velhaco e enganador!
Envergonhava-se a não bacante, aquela cuja vivência não é mundana e que cuja alma é pastora, cuja alma é também música e benemérita e que estava ali para angariar fundos para a ONG que representa e que tem fins humanitários – combate a fome!
Mais de quinze mil euros! Dariam para matar a fomes durante duas semanas a milhares de crianças em África. O oligarca humilhou-a com um donativo de dois mil euros!
Baco é velhaco e enganador!
«- E o que é que tu tens a ver com isso? Foste tu que pagaste? Então cala-te!»
«-Tenho sim! Tenho consciência!»
Baco é velhaco e enganador!
Entretanto, naquela noite, os favores de Mete e Estesícore rendeu a cada uma delas mais de dois mil euros!
Baco é velhaco e enganador!
«- E o que é que tu tens a ver com isso? Foste tu que pagaste?
Então cala-te!»
«-Tenho sim! Tenho consciência!»
Baco é velhaco e enganador!
«- E o que é que tu tens a ver com isso? Foste tu que pagaste? Então cala-te!»
«-Tenho sim! Tenho consciência!»
Baco é velhaco e enganador!
«- E o que é que tu tens a ver com isso? Foste tu que pagaste? Então cala-te!»
«-Tenho sim! Tenho consciência!»
Baco é velhaco e enganador!

* Este texto, foi escrito segundo os termos da ortografia anterior ao recente (des)Acordo Ortográfico.
PS. O jantar, a factura, e os favores de Mete e Estesícore são reais. Baco é velhaco e enganador! «- E o que é que vocês têm a ver com isso? Foram vocês que pagaram? Então calem-se!»; «-Temos sim! Temos consciência!» Baco é velhaco e enganador!

 

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