Com a Figueira da Foz, com os Figueirenses.

Coisas do tempo

gosto de pensar que sou do tempo que sou, deste aqui e agora, com os pés pendurados sobre a ponte Edgar Cardoso, as linhas do comboio uns metros abaixo a desenhar o padrão do tapete da cidade e os telhados, janelas, mais telhados, um rio e um mar aconchegados sobre a falda da serra, e tudo isto faz parte do meu tempo, ainda que eu também seja do tempo em que se faziam outras coisas
que coisas, pergunta-me ela, sem desviar os olhos da boca da barra, adormecida àquela hora estival
coisas não muito antigas, daquelas coisas que se tiram do tempo certo como certos eram os figos em tempo de são João ou as amoras em carreiros ladeados de silvados
agora não há amoras
e tu já namoras?
ela enrubesce e nada diz. às vezes é melhor assim: o silêncio faz parte da harmonia.
outras coisas como a carrinha do pão que deitava pelo tubo de escape um cheiro a fermento ou do amola-tesouras que ganhara um concurso da canção, em tempos ainda mais recuados, quando se cantava para afastar as tristezas da vida ou o jogo do berlinde, que gostava de jogar mesmo perdendo sempre, ou de fazer aviões de papel que raramente levantavam voo ou de jogar ao burro com a minha avó, em noites frias de inverno, com chá e bolo de laranja
a minha avó nunca bebia chá, informa-me ela, baloiçando os sapatos sobre o Mondego. na lavoura é o vinho que dá a força e faz crescer o bigode, conclui.
a tua avó tinha bigode
ela assente.
as coisas daquele tempo, que se cobre de uma finada camada de pó, não eram menos violentas: queimavam o judas para deleite da cachopada e serravam uma velha alcoviteira para gaudio de todos. enterrava-se o bacalhau e o entrudo, não se sabe se vivos ou mortos. e os mortos não saiam das suas casas, ficavam agarrados às paredes e transformavam-se em cortinados de linho
a minha avó tinha um desses cortinados, diz ela. havia noites em que o cortinado ganhava ânimo e esbracejava muito como se dirigisse uma orquestra de fantasmas. morria de medo.
ainda tens medo?
disseste que eram coisas de outro tempo.
gostava de saber quem faz o tempo, dar-lhe duas ou três sugestões sobre estas coisas todas. dizer-lhe que uma cidade precisa de memória. nada se mantém de pé sem raízes. e que talvez por isso há casas e pessoas que devem permanecer, de janelas abertas para esse outro tempo. haverá sempre quem queira espreitar.
alguma vez pensaste em saltar daqui, pergunta-me, desviando pela primeira vez os olhos das águas, fitando-me
(silêncio)
nenhum tempo faria sentido sem ti.

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