Histórias dentro da história!

ABA-33-80 era a matrícula do Audi Super 90. O primeiro A da matrícula era comum a todas as matrículas dos veículos matriculados em Angola. O Audi de cor azul bastante escura estava estacionado à torreira do inclemente sol que em África é rei durante o dia. A sua chapa queimava ao toque e reverberava as ondas de calor. O calor castigava – me. Os vidros completamente abertos de pouco serviam, apenas permitiam que ar quente e ar muito quente se digladiassem, vencendo, ainda assim, o ar muito quente. De tal luta, nenhum benefício me vinha. Gotas grossas de abundante transpiração escorriam-me pelas têmporas abaixo, enquanto outras ensopavam-me o tronco e muitas outras faziam com que a minha camisa se colasse ao banco do carro.

Ardente na espera, ardente na transpiração e ardente na impaciência, olhava constantemente pelo espelho retrovisor, como se isso pudesse apressar quem daquele suplício me libertaria. Numa dessas muitas olhadelas, o meu coração pulou, disparou, começou a bater apressada e descompassadamente. Batia daquela forma acelerada, como batem todos os corações aos 16 anos quando são surpreendidos pela visão inesperada da apaixonada. A Teresa, a Teresa! Sim! A Teresa com os seus longos e brilhantes cabelos loiros que faziam inveja ao ouro, vestida com umas calças vermelhas - vermelho choque da “la Finesse”- com a cintura subida, justíssimas até aos joelhos e que abriam daí para baixo até acabarem numas generosas bainhas em “boca - de - sino”, atravessava a outra rua em direcção à Nova York, a loja de roupa mais “chique” da cidade. Ia linda, como só ela era - para mim, claro! - Ia na companhia daquela senhora alta que me inspirava um reverencial e intimidante respeito, respeito esse reforçado por aquele olhar glacial que enregelava e paralisava qualquer “atrevidote” que se aproximasse da sua cria com outra intenção que não fosse a mais pura e inocente amizade. Presumi que ela ia comprar uma peça de roupa especial para estrear no fim de semana, pois estava combinado irmos à matiné – na qual eu iria ver, pela terceira vez, o filme intitulado “Trinitá, o Cowboy insolente” – e, depois, iríamos lanchar. Nunca o saberei, mas talvez conseguisse, finalmente, dizer-lhe por palavras tudo o que os nossos olhos, de forma doce, linda e fugaz vinham dizendo...Estava longe de imaginar que esse dia nunca chegaria e que era a última vez que a via. Consola-me saber que a última vez que olhámos para dentro um do outro - sem o sabermos -, o fizemos em simultâneo. Disseram e acertaram os olhos aquilo que as palavras para sempre calaram…Aconteceu assim porque os senhores poderosos, os senhores decisores das guerras no mundo, indiferentes ao sofrimento que causam a milhões de outros seres, assim o haviam decidido. As imensas riquezas de Angola eram muito cobiçadas por potências estrangeiras e, como refere um antigo conto popular angolano: os estrangeiros agitam as águas do rio, tornando-as lamacentas, criando assim a confusão e o desentendimento entre o povo, que acaba por guerrear-se.

Pouco mais de sessenta dias haviam passado desde aquele marcante dia de Abril de 1974. Já não era o povo quem mais ordenava. Esta expressão, linda e colorida de significado e poesia, secou. Os vermelhos cravos foram arrancados dos canos das armas. Quem mais ordenava, agora, era a força cega das armas, inconfundivelmente expressa num apavorante e contínuo ratatá! Balas tracejantes, morteiros troantes e granadas assassinas rebentavam com os sonhos de liberdade, igualdade, fraternidade e pacífica transição para a independência daquele território. Três distintos movimentos de libertação, acantonados em extremos opostos da cidade, lutavam entre si, ferozmente, pelo controle da cidade. A população inocente e indefesa, transmitia, através do passa a palavra, do boca-a-boca, as atrocidades que eles, na luta pelo domínio territorial, iam cometendo sobre ela. Massacres e mortes de inocentes civis encabeçam o rol dessas atrocidades.

Nesse dia, no final da tarde, vínhamos da periferia para o centro da cidade, onde tencionávamos, por segurança, pernoitar. No Audi, vinham cinco pessoas: dois adultos - marido e mulher ( meus pais ) - , um pré-adolescente (eu), uma criança ( meu irmão) e um bebé de sete meses, também nosso irmão. Num dos muitos postos de controle espalhados pela cidade, soldados, fortemente armados, mandaram-nos parar. O guerrilheiro - em francês - pediu as nossas identificações e o comprovativo da filiação partidária. Eu e o meu irmão não possuíamos nenhuma identificação de filiação partidária. Tal facto foi pretexto para que um dos guerrilheiros encostasse uma arma à cabeça do bebé. Pretendia que as crianças - eu e meu irmão – saíssemos de dentro da viatura porque, no dizer dele, éramos “pioneiros” - denominação dada às crianças guerrilheiras, propaladamente usadas em combate por um dos contendores nos combates fratricidas. Vi as mãos do meu pai crisparem-se no volante do carro, enquanto a minha mãe, qual leoa a proteger as crias, em atroz desespero, se insurgiu e argumentou. Aconteceu o milagre! Em francês, o guerrilheiro mais graduado, impediu a execução daquela ordem e mandou prosseguir o ABA-33-80. Com este incidente, quebrou-se qualquer resistência, qualquer apego à terra, aos bens materiais e à vivência de três gerações geradas naquelas terras. Muitos anos mais tarde, lia a obra intitulada “ A Insustentável Leveza do Ser”, de Milan Kundera, quando uma passagem do livro me fez recordar este momento. Esta visão, este encontro cara a cara com o horror. Este clique que fere a essência e destrói, inapelavelmente, toda e qualquer resistência. Fugir da guerra, fugir da morte certa, passou a ser o único motivo, a razão de vida!

A população debandava em massa. A ponte aérea estava no auge. Por terra, caravanas e caravanas de camiões, e todo o tipo de automóveis, rumavam a sul e aventuravam-se deserto adentro, rumo à África do Sul. Pelo mar, muitos outros também fugiam. O povo, apavorado, desorientado, minuto a minuto, hora a hora, dia a dia, via cair os seus. Temeroso, nem condignos funerais fazia. Quase às escondidas e com indigna pressa, despejava nos cemitérios – a abarrotarem – os cadáveres perfurados por balas cegas de ódio e ganância. Não havia tempo para chorar com sentida dignidade. Ao luto iniciado, por vezes, se sobrepunha outro e mais outro, reforçando uma imparável escalada de terror. Fugir…fugir….fugir, era o são sentimento, a réstia do apurado instinto de sobrevivência. Na louca e instintiva cegueira da fuga, partiram-se famílias. Pais perderam o norte aos filhos que, desnorteados, fugiram para sul, cada vez mais e mais, para sul. Aventurando-se pelo deserto adentro em caravanas imensas de carros, carrinhas e camiões sobrecarregados com tudo aquilo que apressadamente os seus donos conseguiram juntar. Rodavam, noite e dia, enfronhando-se cada vez mais pelo deserto adentro na procura da fronteira do ” inferno” com o “paraíso”. Fronteira essa, transposta, quando eram finalmente pisadas terras da África do Sul. Durante alguns anos, muitas famílias perderam-se e desencontraram-se sem saberem qual o destino dos seus entes queridos. Lucraram os jornais que, por várias partes do mundo, publicavam anúncios de desesperadas mensagens: Fulano….filho de sicrano, com a última residência em tal parte de Angola…, e agora a residir em…, com os seguintes contactos…., procura….beltrano (filho, cunhado, irmão, tio, avô, noiva, namorada, amigo…) com o último paradeiro conhecido em … Agradece a quem conhecer o seu paradeiro que lhe faça chegar este anúncio, ou, se tiver outras notícias, que também as faça chegar ao anunciante. Todos os dias, durante muitos anos, irmanados na dor, cooperávamos, lendo os anúncios. Foi desta forma que consegui notícias dos meus irmãos mais velhos, cunhadas e sobrinhos e, sobretudo, de muitos e muitos amigos dos quais perdera o norte, desconhecendo que para sul haviam rumado. Cada reencontro era refrigério, pese embora nem todas as informações o fossem. Estou a lembrar-me duma notícia que, tardia, confirmou os piores receios. Duma, que carregava pesado luto, parceladamente entregue, como se isso pudesse mitigar a dor e o sofrimento. Duma, da qual apenas escrevo as respostas, por ser-me impossível verter em palavras o sofrimento daquela mãe e avó que, com os olhos esbugalhados, com as mãos fortemente apertadas sobre o peito ressequido, numa ânsia incontida, inquiria, à medida que ia obtendo as destroçantes e demolidoras respostas: Ela morreu! Sim! Morreu! Surgiram complicações durante o parto; Sim! Mãe e bebé! Ele?... Usou a pistola que tinha para defesa e... defendeu-se…., defendeu-se da dor, do sofrimento e, sobretudo, da loucura que se adivinhava. Defendeu-se da loucura que acabaria por tomar conta do seu ser para o resto da sua vida. Sim! Descansam os três juntos, em paz. Sim! Rasamente enterrados e cobertos pelas muito quentes areias daquele imenso deserto! Algures… Em local embelezado e assinalado, não com cruz, mas…. com uma, muito bela Welwitchia mirabilis símbolo tenaz de vida no deserto - também conhecida pelo “Polvo do deserto” - que com os seus tentáculos os protegerá daquele abrasador calor durante os próximos mil anos. Sim! Todos juntos! Ela por cima dele…, com o bebé protegido e aconchegado dentro do seu ventre de amor… Para os seus amados familiares também sobrevirá a paz, somente, à medida que os seus olhos se forem fechando e forem, cada um por si, a seu tempo, encetando a derradeira e eterna viagem.

A debandada deu-se, sem ordem nem regra. Eu e milhares de outros “araújos” dentro da barriga dos enormes “pássaros de ferro” que, em qualquer pista minimamente operacional, nos tragavam - e aos parcos pertences permitidos -, até mais não poderem. Centenas e centenas deles, hora após hora, num esforço de internacional solidariedade sem precedente, aterravam e levantavam e vidas e vidas salvavam. Os “marujos” lotaram barcos e mais barcos, na sua maioria cargueiros e barcos de pesca que, rumando apressadamente a mar alto, fintavam as balas que vencidas pela distância e pela gravidade se afogavam e, com elas, o seu instinto assassino.

Por volta das vinte e três horas desse dia, cheguei ao pequeno aeroporto que estava completamente lotado. Vociferantes e descontroladas, centenas de pessoas tentavam furar as filas e roubar a vez de outros. Como sempre, e em todos os lugares onde ocorrem grandes desgraças e calamidades, lá estavam, estrategicamente perfilados, os odiosos e abomináveis “abutres”, tragadores da “pútrida carne” das vítima da horrorosa desgraça. Com indizível cinismo, trocavam valiosos bens - que acabariam por ter de ficar em terra – nomeadamente automóveis e tudo o mais que se possa imaginar, por um maço de cigarros que era, geralmente, apressadamente esfumaçado, enquanto que, misturado com o seu fumo, se esfumavam sonhos, projectos e muitas esperanças de vidas. Desolado, percorri com os olhos a gare de embarque. Deparei com um enorme ursinho de peluche, obedientemente “sentadinho” numa das cadeiras, aguardando paciente e esperançosamente que a criancinha que ali o deixou viesse buscá-lo, como lhe havia prometido. Criancinha e ursinho, ursinho e criancinha, apanhados no meio daquela enormíssima tragédia, tinham sido “piedosamente” enganados, pois jamais os seus corpinhos se tornariam a abraçar.

Mais tarde, vim a saber do destino do ABA- 33-80. Ele foi confiscado em nome do chamado esforço de guerra. Foi “distribuído” a um comandante cubano que, posteriormente, o mandou “amaricar” de rosa cor pintado e, por fim - terminada a Operação Carlota, assim chamada em homenagem a uma escrava que, em Cuba, no século XIX, se rebelou contra os seus senhores -, viajou para Cuba onde, hoje, certamente, o encontraria, estimado, quiçá, esfumaçando o irrecusável “ Havano”, não nos queixos, mas sim na grelha dianteira.
Na fila para entrar para o avião, deparei-me com o meu amigo Artur, mais conhecido por “Ossos”, por causa da sua extrema magreza, mas que, desta feita, parecia três vezes maior, pela quantidade de roupa que trazia vestida, no inútil afã de trazer mais algumas coisas. Outro, também amigo, rumo às escadas de acesso ao avião, imitava de modo perfeito o cacarejar das galinhas, chegando ao ponto de conseguir sacar um indignado comentário a uma “perua”: Credo! Que gentinha! Até galinhas trouxeram! Foi inevitável a gargalhada geral. Dentro do avião, encontrei a Luísa, grávida, sempre linda, tanto ou mais linda quanto maior era o sofrimento que a consumia. Inadvertidamente, perguntei-lhe pelo Luís. A resposta, tão chocante quanto curta, veio rápida e convicta: Abandonou-nos! Fugiu com uma amante. Levou tudo quanto pôde, menos o meu filho, que hei-de criar, se Deus me der saúde e força! Fiquei atónito. Fiquei sem saber o que dizer. Apenas balbuciei: Há-de querer! Ele é o verdadeiro Pai e nunca abandona os seus filhos.

Trinta minutos depois da meia noite – completamente às escuras, como se de vulgar larápio se tratasse - os meus pés despegavam-se, definitivamente, do angolano solo. No avião o “menino-homem” começava a tomar consciência da realidade. Sentimentos antagónicos conflituavam dentro de mim. Partido pela dor do amor à força arrancado, olhava feliz para a minha mãe com o bebé ao colo e via o outro irmão vencido pelo sono, a dormir a onze mil metros de altitude, não propriamente nas nuvens, mas bem acima delas. Dormia o sono justo dos inocentes. Para trás ficara o meu pai e, com ele, aquela mortificante dúvida: Será que nos tornaremos a ver? Para trás, quase tudo ficara, até o álbum das fotografias. O registo de momentos das vidas, outrora vividas. Testemunhos duradouros de momentos que foram muito bons. Locais, figuras, gestos e expressões gravadas em imagens congeladas no tempo e que faziam parte integrante das vidas vividas. Imagens que permitiriam reviver essas mesmas vidas, quando a memória começasse a trair. Lamentava a sua perda, mais do que quaisquer outros bens materiais. Descolou o avião e, com ele, descolou também o “menino – homem” que pulou no tempo. Pulou a adolescência sem sequer lhe tocar. Aquele “menino-homem” pulou por cima dela, dos seus encantos e dos seus devaneios. Saltou aqueles anos em que no mesmo dia o sol brilha numa incontida alegria e, de repente, se abate uma enorme e negra tempestade. Nos quais um dilúvio de receios e dúvidas e de sentido medo fazem parecer que vai acabar o mundo, até que, inesperadamente, tudo passa e o arco-íris ( símbolo da aliança ) ressurge, belo, como só ele é! Sem a adolescência não existiram idas às discotecas, paixões muitas, viagens de fim de curso, inter-rail e muitos outros tesouros próprios dessas idades. Em vez disso, existiu uma caixa de gelados às costas, quilómetros e quilómetros percorridos a pé sobre a areia escaldante do verão, apregoando: Há gelados, fruta ou chocolate. Existiu o emblema de nadador salvador ao peito e muito, mas mesmo muito, orgulho por pagar desde os 17 anos de idade a roupa que desde então tenho vestido e, sobretudo, o orgulho de, nunca, nunca, mas mesmo nunca, ter roubado o pão de ninguém. Ainda hoje, tenho o cuidado, de nesta terra muito cansada, não comer mais do que aquilo que me baste, para que por minha imprudente ganância, não falte comida a alguém. A meio da viagem, resolvi esticar as pernas e comecei a percorrer o avião. Para meu espanto, umas filas mais à frente, deparei-me com a minha avó paterna, natural da freguesia de Carritos, concelho da Figueira da Foz. Daí a minha muito casual vinda para esta maravilhosa cidade onde, sem reservas, fui recebido e acarinhado pela minha tia-avó e por todos os outros familiares que nem sequer me conheciam. Na primeira noite dormida nestas paragens, adormeci com o seguinte pensamento: Hoje, posso dormir tranquilo, já não há guerra nem tiros. De manhã, bem cedo, acordei sobressaltado. Estouros e mais estouros ribombavam no ar. Saltei da cama! Um primeiro pensamento assaltou-me a mente: Recomeçou a guerra! Ainda hoje, não gosto, detesto, detesto o fogo de artifício! Ainda hoje me afligem os estrondos dos foguetes quando sou surpreendido por eles!

Quarenta anos se passaram, e não se saciaram os senhores fazedores das guerras nem diminuiu a sua ganância. Aquela forçada “debandada” atingiu mais de meio milhão de PESSOAS. Para eles, apenas, um número com seis dígitos. Segundo as informações fornecidas pela ONU, nos finais do ano de 2015, o número de PESSOAS deslocadas no mundo já ultrapassavam os 63,5 milhões. Para eles, apenas um número com oito dígitos! Se não fosse o mar, sempre o mudo e acusador mar, ter atirado para a praia de Ali Hoca, na Turquia, o corpinho afogado e virado de borco daquele menino sírio, chamado Alan Kurd, que fugia do inferno da guerra na cidade de Kobane, estava-se tranquilamente bem. Que podemos fazer? Já se sente, já se vive o espírito do Natal por toda a parte. Mil de tudo e por toda a parte. Mil luzes, mil cores, mil embrulhos, mil prendas, mil laçarotes, mil Popotas grandes e mil anãs, mil correrias e mil compras de última hora, apressadas, a mil à hora. Temos que aproveitar e bem! Afinal o Natal resume - se àquelas “horitas” daquela única noite. Quais deslocados! Quais guerras e outras tristes coisas! Oh!!!!!
Perdoem-me, caros leitores, mas, desde aquela altura..., deprimo sempre muito nesta altura...

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