Tragédia!

Impotente, incrédulo, profundamente triste e arrasado. São estas quatro palavras conjugadas que mais se aproximam dos sentimentos que em mim coexistem e de mim se escapam, enquanto, com os olhos fixos no ecrã, constato tão grande e estúpida tragédia.
A Natureza, com indiferença, agiu, fez-se, “naturalmente”, Natureza, com completa indiferença pelo sofrimento e pelo dano causado à vida.
A Natureza, cega e indiferente, bailou a dança da morte e da destruição. O Fogo, os raios secos e vento caprichoso e intenso e de direções variáveis, no desenfreado desejo de liberdade e na sua descontrolada fúria, foram os egoístas e inconscientes bailarinos. A música foram os gritos, foram os ais desesperados, foram os arfares secos das gargantas queimadas que só emudeceram com a chegada da libertadora morte.
As pautas daquela maldita música foram quilómetros e quilómetros de arvoredo, milhares de indefesos animais, homens velhos e novos, mulheres novas e velhas e crianças. Pautas, foram também, os bens patrimoniais e o não patrimoniais, consubstanciados em bens e nas memórias irrecuperáveis e nos sonhos interrompidos dos vivos e dos mortos.
Nas labaredas das notas escritas nessas pautas, arderam vidas, matas, carros, casas, mobílias, bibliotecas, poemas inacabados, cadernos com vidas escritas a meio, e muitas memórias que se julgavam preservadas em inúmeros meios de suporte que, infelizmente, sucumbiram ao vento que nada levou e ao fogo que tudo devorou.
Perdurará o fogo, perdurarão as mortes, perdurará esta má memória, na memória daqueles que heroicamente o combateram. Perdurará na memória daqueles que perderam os seus entes queridos, os seu amigos, e na memória daqueles que, como eu, horrorizados, não conseguem entender nada e, sobretudo, nada conseguem aceitar.
Lá, onde o inferno deu uma pálida imagem de si, heroicas formiguinhas enfrentaram-no com mangueiras nas mãos, e transportando em macas os corpos das vítimas que iam resgatando da boca da morte. Essas heroicas formiguinhas jogam jogos muito sérios, jogos de vida e de morte, pondo à frente dela (morte) a própria vida, os sonhos ainda por cumprir-se. GRANDES E MAGNÍFICAS HEROÍNAS! OBRIGADOOOOOOOOOO!!!!!!!!
Fiquei estarrecido a olhar para aquele cenário dantesco, onde vi carros totalmente calcinados, vi chapa completamente retorcida, vi carros com as portas deixadas abertas por quem fugiu, em desespero, mais dez ou vinte metros, obrigando a impiedosa, a voraz e insaciável morte a correr atrás deles.
Imagino aquele carro, cujo condutor, desesperadamente, ainda tentou fazer a inversão de marcha. Morreram, sem dó nem piedade, não no mar -ou talvez sim num mar de fogo - cavalo e cavaleiro. Bateu-se o cavaleiro, correspondeu com destreza e galhardia o cavalo, mas venceu-os, a assassina!
Imagino aquele herói a largar a meio o café ainda quente. Imagino-o, com os picos de adrenalina nos máximos. Imagino-o a fardar-se à pressa, sem querer perder um minuto, para não lhe dar esses preciosos segundos de vantagem. Não consigo aceitar que ele morreu, porque lhe foram desvantajosos, precisamente, aqueles preciosos segundos. “Até logo”, terão sido as suas últimas palavras, para os seus, os de lá de casa. Um até logo, sem logo, verdadeiramente, apenas, um insuspeitado até nunca mais!
Imagino mães e pais agarrados aos filhinhos. Imagino-os, desesperadamente, a darem, em primeiro lugar, o corpo às chamas, esperando, para os seus meninos, um milagre, a misericórdia da desalmada. Este imaginar mata-me! Antes bloqueasse, antes não conseguisse, sequer imaginar.
O que nos contará o disco do tacógrafo daquele camião arrebatado pelo fogo? Como terá sido aquela última “faena” com a besta da morte? Como terá sido encará-la olhos nos olhos, enquanto ensaiava uma ultima e desesperada finta? Tê-la-á enfrentado num cauteloso pára e arranca, num pára e arranca, sobressaltado pela dúvida, dá não dá? Passarei ou não passarei? Terá sido perseguido por ela? Tê-la-á controlado pelos retrovisores, enquanto galopava no seu máximo, arfando enquanto o fumo e o ar quente sufocavam, entupiam e queimavam inapelavelmente? Em que estação vinha sintonizado o rádio, que músicas e que palavras o terão embalado, suave e alegremente, para aquele fim terrível e horroroso?
Em qualquer destes casos, e também nos outros, todos tiveram a perceção de que estavam condenados e, em todos os casos, nos derradeiros minutos, o instinto de sobrevivência sobrepôs-se à racionalidade. Terão, certamente, falecido como falecem os afogados que, em desespero, agarram o que quer que seja, areia, plantas, objetos e seguram-no como se de uma corda salvadora se tratasse. Eles, os que puderam, correram, ajoelharam-se ou atiraram-se de borco para o chão, enquanto eram impiedosamente ceifados.
Já li, já ouvi dizer muitas vezes e, por várias vezes, vivenciei que a morte não dói. A morte, naquele instante último, é uma sensação suave, doce e conformada libertação, é uma pacífica partida. Estou absolutamente convencido disso -pese embora possa estar errado em relação a alguns casos. Só Deus sabe! -. Formei esta convicção em consequência das cinco vezes em que já estive cara-a-cara, olhos-nos-olhos com a morte. Venci-a! Venci-a, simplesmente, porque ainda não era a hora dela, ainda não era a hora de ela vencer, porque a vencedora, na hora certa, será ela!
Lembro-me que, no penúltimo confronto, completamente intoxicado pelos gases libertados pelo esquentador, já sem força nas pernas, o instinto levou a que eu saísse da banheira e destrancasse a porta do quarto de banho. Só depois caí. Que delicioso, que libertador o contacto do meu ofegante corpo com o chão frio e húmido. Nesse momento, nenhuma dor me assaltou, nenhuma mágoa, nenhum arrependimento, nenhuma revolta: tão somente invadiu-me um doce adormecer. Mais nada senti.
No último confronto, uma súbita e forte indisposição sobreveio-me. Sobreveio, tão subitamente, que mal tive tempo para tirar os óculos da cara e, numa voz sumida, sem forças, chamar pela Pi. Estava sentado à mesa, por isso nem o doce adormecer senti.
De ambas as vezes, gritos lancinantes puxaram a trela que me trouxe novamente à vida. Na penúltima, a primeira consciência- “re-consciência?!?”- começou com a audição misturada, confusa e longínqua das sirenes da ambulância e da voz do meu pai a chamar por mim, enquanto a ambulância, numa pressa louca, atravessava a antiga ponte dos arcos. Da última vez, a Pi gritava. Saíam-lhe fortes os gritos, saíam-lhe da alma. Lembro-me de mim sentado à mesa, mas deparei comigo estendido no chão. Entre o momento em que tirei os óculos da cara, o momento em que me apercebi dos gritos da Pi e o momento em que também percebi que estava estendido no chão, não senti nada. Não senti sequer que estava a partir e, se tivesse partido, não o teria percebido. Dor zero! Sofrimento, angustia, remorsos e tudo o mais..., ZERO! De ambas as vezes, as primeiras palavras que proferi foram: Eu estou bem! Eu estou bem! Elas queriam simplesmente dizer: Eu venci-a! Eu venci-a!
Isto narrei para dizer que a morte em si, naquele preciso momento, não dói. Ela abocanha de tal forma que os sentidos não conseguem reagir e registar a dor. Continua a doer sem fim, nos sobrevivos, a dor da morte doutros. Essa dor apenas morrerá quando da morte destoutros. É assim a morte! É assim a morte!
Evitar, de todo em todo, tragédias destas não é possível! É possível diminuir o grau de probabilidade delas ocorrerem? Sim! Como? Interferindo, alterando uma ou outra das suas principais condicionantes. Numa análise incipiente e redutora do problema, e para início de conversa, aponto apenas três delas: reduzir a carga da plantação de eucaliptos no território nacional; reordenar séria e eficazmente o território nacional; poupar e reciclar o máximo de papel. Esta última decorre do apelo à consciência e ao civismo de cada um de nós.
Escrito num momento de consternada dor!

 

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