A louca do Simão!

- O que procuras tu velhinha, encurvada junto ao último resfolegar destas ondas desfalecidas?
- Ah! Meu menino! Caminho à beirinha do mar das memórias da minha vida, envolta neste xaile com as cores vivas do arrependimento e, procuro um aroma, um brilho, um ai que seja, procuro o reflexo dum sorriso, um bilhete dentro duma garrafa atirada ao mar numa qualquer ilha deste mundo pelo meu único e grande amor, que para fugir do sofrimento causado pela minha cobardia, mergulhou exactamente aqui - garantiu quem viu - e nadou, nadou, nadou... até a linha do horizonte o encobrir para sempre.
Aquele dia não tinha ainda consumido de si mais uma hora por inteiro quando me avisaram. Cobriu-me instantaneamente a alma aquela cor negra do remorso. Corri para aqui a gritar por ele, dizem que enlouqueci -mas não enlouqueci-, arrastaram-me daqui, fecharam-me durante meses, gritei, gritei por ele durante todos esses meses e venci-os!
Até que soltaram a Louca do Simão como passei a ser chamada. Já ninguém sabe o meu verdadeiro nome. O dele perdurou na memória das pessoas, apenas como - Simão! Quando o vi pela primeira vez estava descalço, trânsido de frio, trazia nos olhos fome de quase tudo, menos da fome, porque ele era a personificação dela em pé.
Aquela troca de olhares fez as batidas do meu coração ressoaram dentro do meu peito como um bombo. Apaixonei-me por ele naquele instante. A minha mãe ao meu lado, com a minha mão presa na dela sentiu o baque do meu coração.
Puxou energicamente a minha: Não! Não! Não! - disse-me sem palavras!; Sim! Sim! Sim! - respondi-lhe em silêncio com o safanão que libertou a minha da mão dela, ficámos conversadas até casa. Dentro de casa, transtornada, avocou os Almeidas pelo lado do meu ramo familiar paterno e os Cabrais pelo meu ramo familiar materno, disse ainda que condesceria num qualquer outro sangue azul desde que de linhagem ainda mais elevada - ver-se-ia! - sentenciou.
Atónita, eu nada entendia daquela conversa. Mais tarde comecei a entender: tratava de casamentos de conveniência; heranças; aumento do património familiar sem trabalhar e..., e..., e então eu: Não! Não! Não! ( aos Almeidas, aos Cabrais ou a qualquer outro da escolha da minha mãe, ainda que de linhagem mais elevada) e Sim! Sim! Sim! somente ao meu Simão. A partir daí, entre ora Sim! Sim! Sim! e ora Não! Não! Não! fui crescendo na idade e na determinação de só querer casar com o Simão.
A minha família não queria o nosso namoro porque ela tinha em si muito de seu e a de Simão não. Mas como o destino manda mais do que o sangue ou qualquer outra humana vontade, ele fez de mim herdeira única dos Almeidas e dos Cabrais e também satisfez o meu o meu Não! Não! Não! a qualquer outro da escolha da minha mãe, ainda que de linhagem mais elevada.
Morrerei sem que os meus lábios sejam beijados e os meus íntimos peitos sejam acariciados por alguém, infelizmente, incluindo o meu amado Simão, assim também me quis o destino! Não me perdoo pela cobardia de não ter lutado ainda mais ferozmente pelo nosso amor e, de tudo também recrimino o meu Simão por ter sucumbido tão loucamente à dor da sua rejeição pela minha família - mas quem sou eu para o recriminar?
Agora surge-me o sol pelas costas e afunda-se todos os dias à frente dos meus olhos naquele ponto onde ele desapareceu. Estou aqui todos os dias, é aqui o meu purgatório. Como meu inferno, alimento a louca dor da esperança que me queima por dentro e alimento-a imaginando-o vivo; imaginando que voltará para mim; imaginando que mantém aquele sorriso lindo onde me perdia feliz; imaginando que, que, que ..., mas..., quando exausta caio num sono profundo, mergulho no mundo dos sonhos repetidos e sonho que nado mar adentro à procura dele.
Então o mar torna-se cada vez mais profundo e, com os meus olhos muito abertos esquadrinho-o ao milímetro e nada..., e nado..., e nada..., e nado... e quanto mais nado mais me tenho de desviar de mais barcos, cada vez maiores, e nada... , e nado..., e nada..., e nado... numa interminável espiral invertida até acordar deste pesadelo quase afogada em lágrimas. Ai meu rico e lindo menino! A cor do remorso é negra e a cor do arrependimento queima-nos por dentro como brasas em vermelho rubro!
Sabes agora donde vem chamarem-me a louca do Simão? Eu não sou louca, eu fui louca quando não lutei com todas as minhas forças pelo meu grande e único amor. Louca é a minha parente distante, D ′Orey (por parte do marido), que definha numa gaiola dourada perdida numa das muitas quintas da família espalhadas por este país cheio de fermentos mofados de tradições e preconceitos retrasados.
Ah! Meu menino! Se um amor verdadeiro te calhar, luta por ele com todas as tuas forças, nem que tenhas de fugir com ele para longe, para lá da linha do horizonte e para sempre!

Walter Ramalhete. Figueira da Foz, 28 de Dezembro de 2024.
Este texto foi escrito nos termos ortográficos anteriores ao actual (Des)Acordo Ortográfico. Reservados todos os direitos de autor.®

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