Um dia, no fulgor da minha vida, quando ainda me julgava capaz de carregar para sempre o mundo sobre os ombros, tive um pressentimento tão mau, tão mau, tão negro, tão negro, com tanta certeza, com tanta certeza, que julguei que ia morrer de tristeza naquele momento. Segurei-me às minhas âncoras com toda a força que me restava e comecei a dissipar o negrume. Soube que entrara no outono da minha vida, ele poderia chegar sob a forma dum acidente de viação, dum problema de saúde..., mas sabia que seria muito lento, muito sofrido e muito doloroso. Chegou dois anos mais tarde... Entretanto a vida segue e as folhas vão caindo...
Anos mais tarde os caminhos do montanhista e os meus cruzaram-se nas ambulâncias, "amizámo-nos" com pressa, sem tempo a perder, passei a visitá-lo no lar onde estava internado. Disse-me que também teve um pressentimento, arregalou os olhos de espanto enquanto me dizia: - igualzinho a ti, uma tristeza súbita, um aviso? Talvez! Depois... caminhei, caminhei, caminhei, não me paravam as pernas, percorri vales, subi, desci, orlei rente a
precipícios nas montanhas, tinha pressa, tinha muita pressa de viver, fiz "jus" ao meu apelido Monteiro, bebi paisagens, bebi os sons dos meus passos, dos pássaros, dos riachos, guardei tudo, tudo, tudo na minha memória e na memória da máquina até que um dia o tal pressentimento se materialisou cinicamente na forma d′ E.L.A (Esclerose Lateral Amiotrófica) e as folhas começaram a cair-me vertiginosamente, e o corpo prendeu-me dentro dele!
Descansa em paz meu amigo! A COVID privou-nos do último olhar! Soube pelo laço negro! Até um dia...
Muito antes do aviso do outono lhe bater à porta, quase juro que o Zeca Afonso pressentiu-o, sentiu também uma tristeza profunda quando em 1964 escreveu a sua BALADA DO OUTONO. - Terá sido consequência da sua sensibilidade de artista? Terá sido uma premonição? Foi uma ou outra, ou talvez tenham sido as duas, quem sabe? Certo, certo é que ele escreveu-a, a tal tristeza, muitos anos antes d′ E.L.A. dar-se-lhe a conhecer e chorou-lhe a alma assim:
"Águas passadas do rio
Meu sono vazio não vão acordar
Águas das fontes calai
Ó ribeiras chorai que eu não volto a cantar
Rios que vão dar ao mar
Deixem meus olhos secar
Águas das fontes calai
Ó ribeiras chorai
Que eu não volto a cantar (...)"
À mercê d′ E.L.A, Zeca Afonso partiu desta vida apressado, partiu como se à vida alguma dívida deixasse, mas dívida nenhuma à vida deixou, porque o Zeca - como o tratavam os amigos - era, é e sempre será demasiado grande para tal.
"Águas das fontes calai
Ó ribeiras chorai
Que eu não volto a cantar"
Tanto sentimento, tanta dor, tanta certeza concentrada apenas nestes três versos!
Neste outono implacável quando instalado, a queda da folha é senão o desprendimento, o desapego dos bens materiais e de outros não materiais muito mais importantes e valiosos. Ainda com vida, o máximo que ele conseguia, num silêncio profundo, era abraçar a sua inseparável guitarra, a sua musa de acordes, contra o peito. Mas, muito perto do fim do outono já nem isso conseguia e também não conseguia cantar, baixinho que fosse:
"Águas das fontes calai
Ó ribeiras chorai
Que eu não volto a cantar"
São muitas vezes assim os derradeiros dias do nosso outono, muitas vezes são passados numa imobilidade sepulcral, cobertos por mantos de dores e escaras, à espera que se nos desprenda a última folha, enquanto sufocamos os nossos porquê sem resposta. Não conseguimos, sequer, segurar nada daquilo que nos deu sentido à vida. É por isso que tento imaginar a despedida silenciosa de tudo aquilo que a este mundo pertence e que por cá ficará à espera de um novo destino; os documentos em repouso na carteira onde lhes pertencia estarem; os trocados para o dia a dia ainda nos bolsos; o boné e o casaco pendurados no bengaleiro junto à porta da entrada à espera da hora da próxima saída; as chaves em coma na argola do porta-chaves, tudo suspenso, imóvel e no quarto da partida, talvez muito longe da última morada, a intensidade da luz reduzida, também a intensidade do movimento e do som, ou seja, a redução dos estímulos da vida à volta... Dizem os poetas na sua bondade linda de ver a vida e as suas estações, que partimos, que atravessamos o misterioso véu, antes dela - a última folha desprendida - tocar no chão. A tua última folha, Zeca, desprendeu-se no dia 23 de Fevereiro de 1987 às 3 horas da manhã e há quem diga que ouviram-se as ribeiras chorar.
Walter Ramalhete.
Figueira da Foz, 29 de Novembro de 2024
Este texto foi escrito nos termos ortográficos anteriores ao actual (Des)Acordo Ortográfico.
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