A vida não é só um hiato breve no tempo que se perde de si próprio. Um dia, não sabemos quando, seremos apenas silêncio e, depois desse dia, nunca mais nos será dia, ser-nos-á apenas tempo sem tempo. Mas de nós ficará tudo os que fomos, fizemos, sentimos e rimos – eu creio.
Depois desse dia seremos ausência de nós e de tudo em nós, sem cores, sem mais desejos ou suspiros, ou sequer sombra, seremos somente nunca querermos mais nada…
Poderemos ainda, por muitos dias, sermos saudades e lágrimas grossas, deveras sentidas por poucos, até que o voraz tempo nos engula e, sob o seu pó acumulado, nos enterre definitivamente numa folha de papel lançado na vala comum dos registos dos óbitos.
Nesse sarcófago de papel oficial, para além do nome próprio e os dos progenitores, somente duas datas importarão: a do nascimento e a da morte; nada mais aí constará, nada mais se saberá de nós, não importará a altura, a cor dos olhos, não importarão os gostos, nem os desgostos e tampouco importará se gostávamos ou detestávamos açúcar… e tudo o resto que nos individualizou, no entanto, vivemos e marcamos com o nosso cunho o tempo que foi nosso e ao qual não fomos indiferentes.
É por tudo isto que me apraz dizer que a vida não se torna só num hiato breve no interminável vazio do tempo sem tempo, hiato esse, testemunhado por uma sucinta certidão de óbito, mesmo para aqueles que pelas suas obras se libertaram da lei da morte.
Mas…, alguém sabe se Epicuro de Samos nascido em Fev. de 311 a.C em Samos e falecido em 270 a. C em Atenas-Grécia, detestava formigas, ou se gostava de contemplar o seu amor ao pôr-do-sol? Se dançava ao luar? Sabemos do seu “Jardim”, da ataraxia e da aponia, mas dele…, nada mais sabemos do que a reza curta da curtíssima certidão de óbito. Dele nada sabemos, nem do seu sorriso, nem dos seus temores e dos seus desejos, nem da cor dos seus olhos. O que é que sabemos daquele homem e do seu modo de respirar a vida? – nada!
É por tudo isto que quando escrevo digo tanto de mim. Digo tanto de mim porque creio que a vida não é só um hiato breve no tempo que se perde de si próprio. Quero que um dia…, -quero que nesse dia que ainda não sei quando será-, quero que nesse dia em que serei apenas ausência e silêncio, nesse dia que nunca mais me será dia no tempo sem tempo, quero que eu seja mais do que as breves linhas escritas no meu sarcófago de papel.
«Ontem não te vi em Bab
ilónia» - diz aquele hiato de vida através dos hieróglifos que o tempo não apagou e que inspiraram Lobo Antunes no seu livro com este título. Também quero que alguém note a minha falta…
(Tocha, 27 de Junho de 2020)
Inicie sessão
ou
registe-se
gratuitamente para comentar.
|
O «Figueira Na Hora» é um órgão de comunicação social devidamente registado na ERC (Entidade Reguladora para a Comunicação Social). Encontra-se em pleno funcionamento desde abril de 2013, tendo como ponto fulcral da sua actividade as plataformas digitais e redes sociais na Internet.
design by ID PORTUGAL