Crónicas de tudo e de nada: A minha rua

Na minha rua não se passa nada. Vivo actualmente na aldeia, ou melhor num lugarzinho com o mesmo nome de alguns outros lugares célebres espalhados pelo Mundo, mas que de facto não tem mais de dez casas bem semeadas. O autocarro para a cidade passa lá duas vezes por dia. É claro que não tem escola, nem sequer mercearia porque o número de habitantes não o justifica, mas tem uma pequenina capela e… adivinhem… uma associação, é claro! - orgulho dos habitantes.
Os pontos altos são a chegada do carteiro (cada vez mais intermitente porque essa coisa de ter carteiro todos os dias e a horas certas era no tempo das vacas gordas); o eventual tractor carregado de resíduos florestais; a senhora da carroça puxada por uma mula que provoca forte irritação nos nossos cães; duas vezes por semana a passagem da carrinha das verduras, enfeitada com pepinos e feijão-verde, que apita desalmadamente rua abaixo até chegar ao seu ponto estratégico de venda onde se reúnem as vizinhas ocupando a via pública sem cerimónias; e o cafezinho depois de almoço na Associação, pacato aos dias de semana mas uma autêntica festa aos Sábados e Domingos. Aí sim, há alguma animação – carros estacionados, motorizadas a acelerar, o portão da Associação a chiar queixando-se seriamente de manifesta falta de óleo ou de uso, as vozes do pessoal que se junta à porta do bar a substituírem o habitual canto dos pássaros, enquanto dentro do barracão, ecoa o som empolgado dos “atletas do jogo da malha”.
Tirando isto, pouco mais acontece. Quero dizer, a não ser naquele dia de chuva miudinha em que um audacioso acelera de uma motorizada rasca mas que estava convencido que conduzia uma Harley Davidson, não se aguentou na curva da capela e raspou mota e joelhos no muro do átrio. Aí sim, foi um burburinho. Juntou-se uma multidão (de quatro ou cinco pessoas…) que mostrou alto e bom som a sua indignação contra o jovem aventureiro. Enquanto uma das mulheres dizia “ai valha-me Deus, ai valha-me Deus” e outra comentava “olhem para esta desgraça”, eu aproximei-me a medo, de telemóvel em punho, pronta para chamar o 112 e receando ver o protagonista do acidente jazendo no chão, inanimado… Nada disso! Chegada ao local vi a mota de pé e tentei perceber qual era o drama. “Onde está o condutor da mota? Está muito ferido?” Perante o olhar perplexo dos vizinhos, olhei de soslaio e vi o motoqueiro encostado ao muro do outro lado da estrada, com as calças de ganga rasgadas - o que não deu para perceber se tinha sido do acidente ou se eram apenas os rasgões da moda -, a mão e o joelho do lado direito ligeiramente esfarrapados, a coçar a cabeça e com um ar de “tirem-me daqui que eu não pertenço a este filme”. Mas então porque estavam os meus vizinhos tão incomodados com um acidente que não parecia ter qualquer gravidade? Não precisei de perguntar porque uma das senhoras virou-se para mim e disse-me “Está a ver isto, está a ver isto?! Olhe que ainda ontem acabámos de pintar o muro da capela. O trabalhão que isto nos deu e olhe a desgraça que ele nos veio aqui fazer!”
Estava tudo explicado! O grande drama da minha rua tinha sido o muro da capela esmurrado por um motoqueiro que nem sequer se magoou! Ele há cada injustiça neste mundo!

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