De Putin a Lou Reed em seis passos

Pelas piores razões, nunca como agora se ouviu falar da cidade ucraniana de Lviv. Apesar de estar localizada na parte oeste do país - mais perto da Polónia, portanto – a cidade não se tem livrado dos bombardeamentos russos.
Pode acontecer que alguns se lembrem que, no europeu de futebol de 2012, a selecção nacional disputou dois jogos em Lviv: com a Alemanha (derrota 0-1) e com a Dinamarca (vitória 3-2).
Se olharmos bem para o mapa da Europa, Lviv fica, a bem dizer, no meio do continente. Do ponto de vista político-administrativo, a cidade foi andando, ao longo dos tempos, ao sabor das transformações que a Europa foi conhecendo. Sem ir mais atrás, Lviv integra o Império Austríaco (depois Austro-Húngaro) a partir de meados do séc. XVIII e passa, depois da Grande Guerra e do fim da lógica imperial, para tutela polaca. Depois da 2ª Guerra Mundial, “ingressa” na Ucrânia e, por consequência, na URSS, fixando-se na Ucrânia independente depois de 1991.
Esta errância faz com que, não raro, o nome da cidade apareça escrito como Lviv/Lvöv/Lemberg (ucraniano/polaco/alemão), sinalizando precisamente as línguas dominantes nas jurisdições em que se foi inscrevendo. Fenómeno parecido se dá, por exemplo, com a actual capital da Eslovénia (Liubliana/Laibach).
A estruturação política de uma parte da Europa, durante muito tempo, em impérios é aliás, a responsável indirecta por muitos dos flagelos, dos massacres, das desumanidades que o continente veio a conhecer. Esses impérios (especialmente o otomano e o austro-húngaro) eram espaços políticos muito diversos nos planos cultural, étnico, linguístico e religioso. O “cimento” que os unia era, bem vistas as coisas, a família imperial que, em cada um, ia governando. A casa de Osmã, os Habsburgos ou, no caso alemão, os Hohenzollern. Com a liquidação desses impérios, as nacionalidades ficaram à solta e sucederam purgas, limpezas étnicas, deportações e perseguições. Se pensarmos, verificaremos que foi justamente o que aconteceu, há não muito tempo, na antiga Jugoslávia.
Voltemos a Lviv. A cidade tem muitos filhos ilustres. Por exemplo, o economista Ludwig von Mises, uma referência do pensamento liberal. Mas a sua figura mais destacada, julgo eu, é o aristocrata, jornalista e escritor Leopold von Sacher-Masoch.
Leopold nasce em 1836, em plena pujança do império austríaco (a conversão para monarquia dual “austro-húngara” dar-se-ia mais tarde), depois de, uns anos antes, ter sido eliminado o fantasma napoleónico.
Em 1870, deu à estampa aquela que viria a ser a sua magnum opus: “A vénus das peles”. No essencial, o livro - um romance de “interiores” muito ao estilo da segunda metade do séc. XIX - relata a história do relacionamento entre Wanda e o seu amante, Severin.
Wanda e Severin estabelecem um contrato, nos termos do qual Severin aceita, com satisfação, fazer-se escravizar por Wanda, condicionando a sua paixão por Wanda ao sofrimento físico e à humilhação moral que ela lhe imponha. Adicionalmente, nos momentos mais hard, Wanda terá de vestir-se com peles, um elemento central da fantasia do escravizado.
Vale a pena dizer que as fronteiras entre a ficção proposta por Masoch e a sua própria biografia são evanescentes. Na verdade, o autor terá estabelecido com uma sua amante um contrato próximo do descrito na novela.
A própria possibilidade de um texto deste teor ter sido publicado diz muito das liberdades públicas que se viviam no império Austro-Húngaro perto do último quartel do séc. XIX.
Porém, volvidos uns anos, em 1886, um psiquiatra alemão, Richard von Krafft-Ebing, faz, na obra Psychopatia Sexualis, uma listagem daquilo que, na sua visão, eram as aberrações sexuais conhecidas. E é justamente nesse texto que é cunhado o termo “masoquismo”. Leopold não terá apreciado ver-se o seu nome associado a uma “aberração” mas o facto é o que termo vingou e é hoje comummente usado, opondo-se ao “sadismo” que bebe nas descrições das obras do Marquês de Sade.


Mas a extensão do legado de Masoch ao universo da cultura pop merece também atenção.
Desde logo, porque uma familiar sua – Marianne Faithfull – além de ter tido um relacionamento com Mick Jagger, notabilizou-se como actriz e cantora.
Mas seguramente mais importante é a inspiração que os Velvet Underground extraíram da obra de Masoch para uma das canções do seu primeiro álbum de 1967 (The Velvet Underground & Nico). A canção, de letra escrita por Lou Reed, é homónima da novela de Masoch – “Venus in Furs” – e retoma os mesmos temas nos mesmos moldes: submissão, o chicote, prazer e dor em simultâneo. O próprio Severin também aparece em cena:
Severin, Severin, speak so slightly
Severin, down on your bended knee.
Taste the whip, in love not given lightly
Taste the whip, now bleed for me”.
A instrumentação está dentro do que se espera do primeiro disco dos VU: guitarra e bateria repetitivos de Lou Reed e Maureen Taucker, cacofonia do violino eléctrico tocado por John Cale. Sterling Morrison ajuda no baixo. Uma canção nuclear no contexto do percurso dos VU.
A quantidade de versões de “Venus in Furs” será incontável. Há, porém, duas que merecem um pequeno destaque. Uma, porque é portuguesa, com tradução de Regina Guimarães e voz de Ana Deus (está em: https://www.youtube.com/watch?v=5CwJbAl6_so), a outra, a cargo dos Siouxsie and the Banshees (está em: https://www.youtube.com/watch?v=NGza3QLelsE) é igualmente notável: em primeiro lugar, porque é difícil desligar a persona artística de Susan Ballion (Siouxsie Sioux para os íntimos) da própria figura da mistress evocada na novela e na canção e, em segundo lugar, porque o próprio baterista da banda assumiu o nome artístico de “Steve Severin” numa claríssima alusão ao protagonista do livro de Masoch.
Numa canção já antiga, Sérgio Godinho perguntava-se se “é cada coisa para seu lado” ou “se isto anda tudo ligado”. É provavelmente a segunda a verdadeira.

(José Correia - Economista)

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