Divago, "divago-me" por aqui, em mim, devagar, devagarinho, assim, sem me mexer sequer!
Muitas vezes divago-me violentamente, devagarinho, sem me mexer sequer, apenas remexo no passado, remexo o caldo fervente das memórias minhas e das não minhas - doutros próximos - depositadas em mim, mesmo assim, memórias, agora minhas também.
Divago devagar por aqui em mim, como estas: interrompida a pescaria à pressa, eu, o meu pai e o amigo alentejano de Beja atirámos os apetrechos de pesca e os poucos peixes para dentro da carroçaria do seu Land Rover, só então deparámos com um pneu traseiro furado. De longe, empurrado por um vento forte, vinham para nós fumo e fogo devastadores que nos avisavam para uma avisada e prudente fuga apressada. Fumo e fogo intensos e rápidos punham ainda mais pressa na pressa de fugirmos. Fugimos furados a toda a pressa que conseguimos, fugimos a favor do vento avisador e no sentido contrário ao do funesto aviso. Capim seco, mais alto que o tejadilho, tombava à frente do Land Rover, num trajecto à cega, sem caminho. Fugir prá frente e depressa era o nosso destino. Safámo-nos por um triz, graças ao generoso coração do Land Rover que, apesar de coxo numa roda, não claudicou. Ainda se acelera o meu coração quando tropeço nessa memória infantil da África que não me sai do coração - quando morrer..., antes de subir definitivamente, pedirei uma moratória dum ano para divagar, devagarinho, por lá, novamente!
Continuando a divagar digo que todos os enterros são-me muito tristes e, muito mais tristes são nos dias chuvosos, tamanha é a sensação de desconsolo, de abandono, de desconforto, que me transmite ver o caixão baixar sob chuva. Sufoca-me o som oco da terra a cair-lhe em cima, no enterro da minha tia-avó Guia, o céu também chorava, chorava lágrimas grossas a cântaros e o som dos torrões a cair sobre o caixão quase submerso em água, era também chapinhado, era pior, bastante pior. Foi assim que me despedi da minha tia-avó Guia, que nessa nossa última despedida, se reencontrou finalmente e para sempre na morte, com o marido amor companheiro da sua vida. Há vidas que se enlaçam de tal forma durante a vida, que continuam enlaçadas mesmo depois da morte, assim aconteceu com ela e com o marido amor companheiro da sua vida que se reencontraram novamente na mesma cova. Nem o juramento - até que a morte nos separe - os separou. Foi também naquele dia que conheci o meu tio-avô, vi de relance o seu crânio, um dos fémures, algumas falanges e falangetas presas a pedaços do pano negro do seu fato que a terra ainda não tinha comido, rapidamente arremessados para a cova à pá, vi-o por causa da falta de sensibilidade do coveiro, nunca o devia ter visto assim tão nu, nem tão indignamente tratado.
Divago, divago-me por aqui, por ali e por onde calha, uso pular aleatoriamente de memória em memória, minha ou doutro, boa ou má, feliz ou infeliz, assim-assim ou nem tanto assim, tanto faz... e, acabei por me fixar nesta, muito antiga, agora salgada pela saudade..., naquele longínquo natal, tão ido, tão ido de mim... àquela pergunta recorrente nos últimos dias, eu respondia, o Beto quer um "cabálo" - ainda na minha muito tenrinha infância impus que me chamassem Beto e, depois, Tocha, até ao dia que em que me identifiquei definitivamente com o nome Walter que a minha tia Lídia escolheu para mim - nessa ansiada noite, lutei contra o sono e contra o cansaço. Fui vencido por ambos. Acordei cedo, corri para a árvore iluminada, um reflexo brilhante vindo duma das luzes da árvore bateu num dos olhos do magnífico cabálo, assustou-me tão intensamente!, que corri novamente apavorado para a minha cama, donde saí a custo de esforçado convencimento.
Nestoutra, levanto-me apressada e atabalhoadamente do trambolhão que me atirou ao chão, ainda oiço o meu pai, invariavelmente, a dizer-me, enquanto corre em meu auxílio: " Tumba! Já está! Estava mesmo a ver que ia dar nisto! Estava mesmo a ver que ias tombar! " Invariavelmente eu desatava a chorar, não de dor, enquanto ferido no meu orgulho, dizia-lhe: " Papá! Não diz tumba no Beto!" Desculpa filho, desculpa! Ouvia-o dizer-me enquanto carinhosamente assoprava a ferida. Hoje dir-lhe-ia: "Papá tenho tantas feridas para assoprares! Vem dizer tumba no Beto!"
É como digo, divago, "divago-me" por aqui, em mim, revivo, "revivo-me" devagar, devagarinho, assim, sem me mexer sequer daqui, até que algum reflexo da dura realidade me desassossegue a remansada divagação vagarosa.
Walter Ramalhete.
Figueira da Foz, 11 de Fevereiro de 2024.
Este texto foi escrito segundo a ortografia anterior ao actual (Des)Acordo Ortográfico. Reservados todos os direitos de autor.®
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