Caro amigo, permita-me que nesta conversa trate todos por tu, excepto a ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica) - essa malvada, também chamada a doença dos neurónios, faço-o, não por respeito, consideração ou temor, mas por asco e vontade inequívoca de distanciamento de tamanha inutilidade, ELA levou-te, roubou- te a nós, arrancou-te do canteiro secreto das minhas amizades, foi-se a flor, mas permanece o seu, teu - ou se preferirem - o teu, seu lugar naquele meu canteiro, lugar agora preenchido com as minhas memórias tuas, (escrevo assim de sopetão, só com as breves pausas das vírgulas, porque a vida é corrida até à morte e só nos permite um verdadeiro e derradeiro ponto final parágrafo, que a trava duma só vez e para sempre, mas que não trava a memória dos que ainda cá ficam) memórias de tudo aquilo que nos foi dado viver em comum, no tempo curto dos poucos meses da nossa amizade, as alegres e as tristes, as regadas com sorrisos e as regadas com o silêncio, muitas vezes, falávamos só com os olhos, faltáva-nos a coragem e também a força para verbalizar os sentimentos, os receios e o medo que nos roía como um ácido, nunca nas nossas conversas pronunciámos a palavra morte, mas nenhum de nós estava em negação, sabíamos que um dia, que ainda não sabíamos quando, ela nos chegaria, e, então, senão tu ou eu, alguém falaria nela ou dela, coube-me a mim falar, agora que soube quando e a qual de nós ela chegou primeiro, sabes?!, é claro que não sabes, nem podes saber, que interjeição mais estúpida!, ela nem sequer é uma pergunta, ela é uma chamada de atenção para esta afirmação, foste estóico!, foste duma dignidade inexcedível na doença e, aproveitaste o dom da vida ao teu máximo e até ao fim, (não uso nomes aqui por respeito ao sigilo e ao recato de cada um) disse a tua última grande amiga e também cuidadora - o sol inesperado que de repente entrou nas vossas vidas e trouxe muita vida desembrulhada em sorrisos, risos, gargalhadas, cantigas, piadas, miminhos e todos os restantes perfumes da vida que só um anjo na terra, daqueles sem asas, consegue trazer - disse lavada em lágrimas de dores tamanhas, que tu esperaste por ela para se despedirem, eras um cavalheiro e um amigo verdadeiro dos teus amigos, obrigado pelo exemplo, obrigado pelo testemunho que nos deixaste, comparáveis a ti, que eu me lembre, foram o Bernardo e o Jorge que amaram também a vida até ao fim, tu também foste muito corajoso e muito digno no teu silêncio nesta fase da tua vida, não tenho memória dum ai ou dum lamento teu, outrossim, tenho na minha memória os teus olhos sempre muito vivos e atentos, nós falávamos muito com os olhos nos olhos e nunca vi tristeza nos teus olhos, essas nossas conversas com os olhos nos olhos eram silenciosas, mas muito profundas, ambos sabíamos que os nossos olhos não nos mentiam e através dos teus olhos conheci-te, conheci um ser corajoso que em silêncio pedia à vida que lhe desse mais vida, mais um dia, e depois, mais um dia e mais um dia e mais outro dia..., e foi assim, vivendo intensamente de dia em dia de acordo com as forças que te iam restando, e depois d′ ELA, aquela malvada, se ter apoderado de ti, eu e tu também, estávamos longe de podermos imaginar que nesse dia, nessa terça-feira, no ginásio da fisioterapia, quando me despedi de ti até à próxima quinta-feira, olhando-nos olhos nos olhos, tinha sido a vez da nossa última vez, do nosso último olhar sem despedida, porque nenhum de nós sabia que era o último, que era a última vez que ... que ... que tantas coisas terminaram ali, tenho esse último olhar guardado dentro de mim, porque há muito tempo que sei, que quase nunca se sabe, que quase nunca sabemos quando é a última vez de qualquer coisa, acontecimento, beijo, abraço e ou até adeus, é por isso que guardo sempre dentro de mim o último olhar, e tudo mais que puder, de qualquer encontro ou despedida, isso ficou-me desde a última vez que me despedi do meu pai com dia, hora e local já combinados para a nossa consoada que nunca nos chegou..., pois, quis o destino que ele -o meu pai- tivesse partido abruptamente e antes da aprazada consoada, quis também a vida, ou o mistério que nos governa, que também não nos tivesse chegado aquela quinta-feira do reencontro que ambos nos prometemos, apesar de entretanto terem passado mais duas ou três quintas-feira, nessa dita terça-feira, saí do ginásio e fui para os parafangos meter uma pasta quente sobre a coluna e fui a conversar sobre nadas com a tua Senhora, Mulher, Irmã, Companheira, Cuidadora, Colinho, Amparo, Abraço e Braço de apoio, Confidente, Almofada do teu choro e tudo, tudo de bem e de bom que um ser humano pode fazer por outro ser humano, neste caso, pelo amor da sua vida, marido e pai dos seus filhos, porque perante ELA, perante a enormidade de tanto malvado sofrimento, opta-se por nada dizer, opta-se por ignorar a ELA, mas fora da tua vista, o castelo, as muralhas altaneiras, as ameias protectoras viradas para o céu como dentes desafiadores, desabam, caem a monte por terra, não fica pedra sobre pedra e transparece nu, sem capa, nem fingimento algum, todo o sofrimento e toda a humana fragilidade da cuida-da-dora de tantas dores, sem que nada nem ninguém possa cuidar-da-sua-dor, foi assim que a vi naqueles breves instantes a caminho dos parafangos, vi-a autêntica, perdida, impotente, vi o vulto da montanha negra da dor que a consumia, mas ELA, a causadora de tanta dor, é mesmo assim, come a vítima por dentro, come um avantajado bocado a cada dia, come tudo com uma voracidade insaciável, come a sensibilidade das mãos, dos pés, do corpo inteiro, come o equilíbrio, come a força, come a capacidade de andar, de segurar uma colher vazia, de mexer os braços e as mãos, de poder espantar uma mosca, de mexer as pernas, os pés e depois, com a vítima imóvel, silenciada ou quase silenciada, já soterrada dentro do próprio corpo e consumida por muitas dores e sofrimento, se não lhe comer os pulmões, tapa ao ar o caminho para a eles chegar..., mas eu acredito que morre o corpo, mas não morre o espírito, ou a alma, ou a essência, ou o que lhe quisermos chamar e, então, um dia numa grande festa nos reencontraremos todos novamente, livres livres d′ ELA e de todas elas, por isso te digo até já amigo, vai preparando a festa do nosso reencontro, porque ouvi dizer que mil dias aqui, são um dia aí, ou o contrário, que importa!, falta um dia para a grande festa do nosso reencontro!, e fecho esta conversa com um enorme ponto final parágrafo.
Walter Ramalhete.
Figueira da Foz, 20 de Janeiro de 2024.
Este texto foi escrito segundo a ortografia anterior ao actual (Des)Acordo Ortográfico. Reservados todos os direitos de autor.®
Inicie sessão
ou
registe-se
gratuitamente para comentar.
|
O «Figueira Na Hora» é um órgão de comunicação social devidamente registado na ERC (Entidade Reguladora para a Comunicação Social). Encontra-se em pleno funcionamento desde abril de 2013, tendo como ponto fulcral da sua actividade as plataformas digitais e redes sociais na Internet.
design by ID PORTUGAL