Fintado pelo Paulo

Há instantes, viajava no mia couto, numa sua pequena colectânea de textos intitulada "pensageiro frequente", quando no seu primeiro texto: "Fintado por um verso" (excelentemente escrito; escrito como só da sua pena poderia surgir um texto assim) fui visitado por uma lembrança do Paulo e do Carlos, uma das muitas memórias da nossa estadia em Coimbra.
Posso e passo a contá-la: O Paulo e o Carlos são irmãos com pouca diferença na idade, ano e meio, se tanto... Ambos minhas amizades e meus contemporâneos no maravilhoso tempo de crescimento no nosso excelente e saudoso fado na Coimbra dos estudantes. A Coimbra estudantil depois da despedida torna-se no Fado mais lindo na vida das suas capas negras. Nós residimos na mesma casa estudantil, onde nos "amizámos" pura e verdadeiramente, como só lá acontece "amizármos" assim.
Quando lá cheguei, eles já lá estavam, estavam já maduros de lá estarem. Depois o Paulo acabou no tempo próprio e saiu, eu e o Carlos ficámos. Depois eu acabei no tempo próprio e saí, o Carlos ficou. Não sei quanto tempo mais.
Assim como os gémeos são naturalmente parecidos, o Paulo e o Carlos são naturalmente muito diferentes, são quase opostos. O Paulo é baixo, quase atarracado, mais moreno que o Carlos e também mais calmo, diria apagado, compenetrado, meticuloso, um livro fechado, estudante estudioso de Direto - não lhe conheci namorada.
No dia em o Paulo saiu, a senhora governanta da casa, quase ainda uma menina, chorou choro de luto parecido verdadeiro. Afinal... o Paulo ... não é assim tão diferente do Carlos - fui, com a evidência, obrigado a concluir evidentemente...
Virado ao contrário, de cabeça para baixo, era o Carlos aparentemente muito diferente do Paulo, mas só aparentemente, porque na essência do essencial - desculpem à minha pessoa esta redundância descarada - Carlos e Paulo e Paulo e Carlos eram Jóqueres do mesmo baralho. Ademais o Carlos era repetente, várias vezes repetido, duma das muitas engenharias, era o Carlos que também era alegre; bem falante, falante até demais; envolvente; doce, tão doce como os rebuçados de doces coloridos; alto e esguio; sorridente e de muito cabelo encaracolado; andava sempre despreocupado de mãos dadas com a vida a passear-se por Coimbra.
Conheci-lhe mais namoradas do que camisas. Por vezes, embora poucas vezes nos fosse consentido, eu e o Carlos falávamos com sentido e numa dessas raras vezes atrevi-me e perguntei-lhe:
- Uma média duma namorada por semana? Porquê? Que sentido isso te faz?
- Nenhum! Nenhum mesmo! - disse com tristeza na voz e com os olhos igualmente tristes; empolgo-me imparavelmente até elas se despirem, têm de ser elas a fazê-lo, mas... depois de quebradas todas as resistências..., quebra-se também dentro de mim a magia, quebra-se também o encanto... e, se eu pudesse ... acabava tudo nesse instante. Maldita sina a minha - disse-mo!
- Maldita sina a tua... não! Maldita assinatura a tua - disse-lhe!
Nunca mais soube nada do Carlos.
Do Paulo soube que tinha sido, efectivamente, surpreendido no seu gabinete com uma colega no colo - no contado, contava-se que era uma colega, mas ..., eu não poria as minhas mãos no fogo - que num desespero gritante, gritantemente audível, tão furiosamente explícito foi o grito, que lhes foi impossível negar ou fingir arrependimento. Efectivamente, o Paulo fazia tudo para aparentar ser muito diferente do Carlos, mas só aparentava, parecia até virado ao contrário, parecia voltado de cabeça para baixo, assim era o Paulo, aparentemente muito diferente do Carlos, mas só aparentemente, porque na essência do essencial - desculpem-me outra vez esta redundância descarada - Carlos e Paulo e Paulo e Carlos eram cartas repetidas no mesmo baralho, eram filhinhos dos mesmos papás. Mas... persiste a dúvida, persiste o desconforto, porque é que um texto lindo como o "Fintado por um verso" me trouxe à memória o Paulo e o Carlos, porquê?!
- Ah! Já sei!!! Foi porque fui fintado pelo Paulo!

Walter Ramalhete.
Figueira da Foz, 24 de Abril de 2024.
Este texto foi escrito nos termos ortográficos anterior ao actual (Des) Acordo Ortográfico.
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