De muito, muito jovem percebi que em Portugal faltava um «Abril». Eu não sabia então que o significado de Abril iria ser alterado para sempre no nosso país. Como podia? Tinha apenas 10 anos e Abril era só o mês das andorinhas e do meu aniversário. A minha educação cívica e política tinha começado praticamente quando aprendi a ler, porque tive a sorte de ser educada em paralelo no seio da minha numerosa e ruidosa família e no recato da casa do meu padrinho, Alberto Azul, homem de fortes convicções democráticas que tinha comigo longas conversas sobre o sistema político em Portugal, a ditadura de Salazar, a falta de liberdade de expressão, as atrocidades cometidas pela PIDE. Estávamos em 1958, o ano das eleições presidenciais em que o General Humberto Delgado assumiu a sua candidatura pela oposição. Toda a gente sabia que as eleições seriam a farsa do costume, mas a personalidade e o carisma do candidato, que congregou à sua volta todos os opositores de Salazar, desde republicanos a comunistas, fez redobrar a esperança de que a mudança seria possível. E foi exactamente nesse ano que eu embarquei na minha primeira missão clandestina. A oposição (ou «reviralho», como era chamada) não tinha acesso aos (adulterados) cadernos eleitorais, onde coexistiam mortos e vivos, sabendo-se que em matéria eleitoral os mortos eram mais activos do que os vivos!
Por essa altura, já eu tinha aprendido a dactilografar na velha máquina de escrever da Junta de Freguesia de Buarcos, onde a “titi”, irmã do meu padrinho, trabalhava. Não havia fotocopiadoras, e reproduzir aqueles calhamaços à mão seria um trabalho infindável. A dactilografia de uma inocente criança de quem ninguém desconfiaria seria, então, a nossa arma secreta! A minha missão consistia em copiar os cadernos eleitorais que a titi levava para casa ao fim do dia, escondidos debaixo do seu largo sobretudo. Os serões eram passados na zona mais recôndita da adega da casa da Rua Nogueira da Carvalho, com as portadas das janelas bem fechadas e um candeeiro apenas a iluminar a mesa de trabalho. A miúda de 10 anos, perfeitamente consciente de que estava a fazer um trabalho secreto e punível por lei que não podia partilhar com ninguém, nem pais, nem irmãos, nem amigos, todos os serões batia as teclas desenfreadamente enquanto o padrinho ditava os nomes. Os cadernos eleitorais voltavam todas as manhãs ao seu lugar, igualmente secreto, na Junta de Freguesia.
A oposição perdeu as eleições, claro(!), e, em 1965, quando eu estava quase a terminar o Liceu, o General Sem Medo foi assassinado pela PIDE, em Espanha. Doeu-me aquela morte como se fosse da família. Humberto Delgado continuava a ser o meu herói. E a sua morte era mais uma prova de que o regime não era apenas totalitário, autocrático, ditatorial; era também assassino, e era preciso continuar a combatê-lo! E muitos o fizeram. Muitos que não podemos esquecer e a quem nunca agradeceremos o suficiente!
Passaram mais quase 10 anos até àquela Quinta-feira de Abril, em que o despertador tocou às 7:00 horas, como de costume, mas desta vez com notícias na rádio ainda confusas e atropeladas pelos próprios acontecimentos. Custou-me entender o que se estava realmente a passar, mas deu para despertar a expectativa de que o fim da ditadura estava em marcha, de que a liberdade já tinha nome, de que a esperança de um regime democrático podia agora desabrochar. Corri para os vizinhos do lado, Maria do Céu e António Menano, ansiosa por saber se também eles tinham ouvido as notícias, se eu tinha entendido bem o seu significado… Claro que tinham! Claro que eu tinha entendido bem! E era claro que a Revolução estava na rua! Foi a explosão de alegria, a euforia da conquista, o sonho de uma vida nova para um povo propositadamente embrutecido durante quatro décadas.
E depois? Foi o final feliz de uma história triste? Não! Foi o começo de uma aprendizagem que ainda continua. Foram períodos bons e períodos muito maus. A tão ambicionada democracia, ao longo destes 50 anos, foi bajulada e apedrejada, exaltada e espezinhada, apaparicada e maltratada por uns e por outros. Mas continua a ser o melhor dos regimes, e TODOS temos obrigação de velar por ela!
Viva a Democracia!
Alice Mano-Carbonnier
In “O Palhinhas” de 24 de Abril 2024
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