O segredo da Dona Aparecida

Eu estava ainda a alguma distância do meu recanto matinal, mas já divisava aquele pontinho lá no cimo do poste, sabia que era ela - a Aparecida!
À minha direita estava o mar ainda deitado, creio que de barriga para cima. Ele movia lentamente o braço do lado dado à costa e fazia umas ondas pequenas, calmas e graciosas que, por sua vez, faziam festinhas na praia a soarem a beijinhos repenicados do gigante meio adormecido.
- Bom dia Dona aparecida! – disse-lhe já disposto e bem!
- Bom dia Senhor Sumido! – respondeu-me agradada na voz.
- Como está hoje o nosso amigo mar? – perguntei-lhe enquanto o observava.
- Lânguido e sonolento, dá a ideia que andou por fora a noite inteira; - sabe-se lá por onde?!; - sabe-se lá a ”marear” quem?! – disse com um tom maroto na voz.
- Deve andar com a cabeça na lua, ou anda aluado…, como dizemos nós os humanos. – disse-lhe a rir-me.
- Pois…, está com ar de quem se cansou…, e muito! – disse-me a rir-se.
- Desculpe a minha indiscrição, amiga Aparecida – comecei por dizer-lhe - , mas diga-me porque olha sempre tanto para láaaaa…, tão longe…, láaaaa onde a visão se perde e nada vê, senão o céu a barrar a queda do mar?
- Como já somos amigos e, porque a amizade não se explica, sente-se!; não se programa, surge!; começa sem se saber como e, muitas vezes surge entre os mais improváveis dos improváveis, – é o nosso caso-, seria improvável uma gaivota Aparecida como eu fazer amizade com um humano, ainda que sumido. Olhe!, penso que aconteceu porque você me parece sumido dos da sua espécie, mas…, respondendo-lhe, digo-lhe que procuro o meu amado. Pigarreou, encheu o peito de ar e prosseguiu: éramos ainda adolescentes quando nos apaixonámos; ele era diferente dos demais, melhor dizendo, das demais gaivotas; ele era miúdo de corpo e, no entanto, tinha uma sede…, tinha uma sede de conhecimento tão grande…, tão grande… que assustava o mar … Ele queria conhecer; queria saber; queria ir mais além ; queria saber se o mar tem dois braços também; queria saber donde vêm e para onde vão os barcos grandes; queria saber se existe láaaaa…., naquela linha do horizonte, uma porta muito grande e secreta por onde eles entram e saem; queria saber o que existe para lá daquela linha do horizonte, tão grande…, tão grande… que todos os dia engole o sol, enfim!…, queria saber demais…, queria saber muitas coisas que nos são inúteis a nós, conformadas gaivotas. Já a minha avozinha dizia que a conformação é uma das portas lentas para a felicidade. Um dia…, inesperadamente, estávamos nós num momento de intenso carinho de asas nas asas e às bicadinhas, quando ele se apercebeu que nos espreitava o pôr-do-sol, inesperadamente, ele levantou voo na esperança de passar pela mesma porta que o sol e, depois, poisar nele e descobrir a sua rota e todos os sítios por onde ele passasse, e descobrir todos os segredos que aquela linha encobre. Dizia-me muitas vezes que bastava voar rapidamente e empoleirar-se no sol no momento em que ele estivesse prestes a ser tragado por aquela enigmática linha que se mantém sempre distante e que se vai afastando à medida que nos vamos aproximando dela. Dizia que se não levantasse voo depois de empoleirado no sol – nós gaivotas não podemos voar no escuro- necessária e indubitavelmente surgiria nas minhas costas quando voltasse a ser dia, surgiria quando o sol voltasse a aparecer, surgiria quando voltasse a amanhecer. Daquela vez, naquele dia, assim fez! Levantou voo e voou, voou, voou, voou, voou… até que desapareceu e se fez noite cerrada. Não sei se chegou a tempo de poisar no sol. Desde aquela noite, passei a dormir sempre voltada para Leste. Sou a única gaivota que o faz! Durmo sempre de costas voltadas para todas as outras gaivotas. Faço-o na esperança de o ver aparecer em cada novo alvorecer. É por isso que as minhas amigas dizem que eu ando com a cabeça sempre a leste, sempre a pensar sempre no meu Desaparecido namorado e…, porque parece que não me bastava…, arranjei um amigo humano Sumido…
Será esta a minha desencontrada sina?...

Praia da Cova, virado a Oeste junto ao mar ente as 7:45 e as 8:20 horas do dia 20 de Janeiro de 2020.

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