Olhares experimentados!

Parecia-lhe um estuão, aquela ânsia que sentia pela repetição do toque apaixonado daquelas mãos na noite de ontem, ainda tórrida na sua memória...
O cabelo fino ia-lhe apanhado à pressa num rabo de cavalo a dar a dar, ritmado com os passos rápidos exigidos pelo movimento do estabelecimento. A hora dos almoços findava a passos largos. Ela e os ponteiros do relógio de parede caminhavam para as duas.
Enquanto atravessava entre as mesas da esplanada numa passada ligeira, satisfeita e até alegre... ,
- recordava as repetidas palavras sábias da avó: " ... só me descobri como mulher depois dos trinta..." -
não notava cansaço, mas baralhava um ou outro pedido por causa da persistência na memória do toque daquelas mãos ardentes.
Também o brilho no seu olhar de mulher satisfeita a desejar que o descanso da tarde chegasse depressa, não escaparia a um olhar mais experimentado... - está-lhe nos olhos, diria qualquer com o tal olhar mais experimentado, só não vê quem não sabe, ou quem não quiser ver!
- " ... só me descobri como mulher depois dos trinta..." - batiam-lhe as palavras da avó como as ondas na muralha do cais. -
Consciente do "estradão", do descaminho, em que aquele espirrinho de menina se transformou, tapava o corpo escultural com o avental enrolado com duas voltas à volta da cintura e, para baixo, ele caía-lhe como uma desconsolada saia a bater-lhe sobre os joelhos. Este artifício encobria-lhe, desfeiteava-lhe a graça do corpo, mas não totalmente. Aos atentos, aos experimentados olhares, pelo contrário - acirrava! Da cintura para cima, nada podia fazer, nem desgrenhada e ramelada perdia a beleza, só uma burca a podia encobrir, mas fazê-lo seria mais que pecado, seria sacrilégio!
As gorjetas caíam grossas na bandeja como os últimos pingos do café na chávena. A bandeja, companheira do constante vai-vem, além de amparo das gorjetas, é testemunha silenciosa dos galanteios que lhe são arremetidos a meia boca com Variações decoradas da Canção Do Engate
- "Vem que o amor não é o tempo
Nem é o tempo que o faz
Vem que o amor é o momento
Em que eu me dou
Em que te dás" -
e de alguns olhares mais quentes e doutros sebosos e mal disfarçados, sussurrados entre dois piscar de olhos.
- " ... só me descobri como mulher depois dos trinta..." -
Caminha por entre mesas acossada pelo mesmo olhar discreto e sedutor de ontem, hoje sentado na mesma mesa onde na véspera tudo começou, enquanto pensa:
- " Benditos trinta ... a avozinha sabia... " -
De si exala uma brisa mais fina que a fina brisa hoje tocada do mar batido a leste da esplanada.
Olha mais uma vez para o pendurado relógio e certifica-se que já passa das duas horas - terminou a primeira parte do turno e tem direito a quatro horas de descanso. Apressa-se a recolher os últimos pagamentos e a fechar as contas.
Debruçada sobre as contas a fazer, arremete silencioso olhar quente, bem quente, pelo canto do olho sussurrado entre dois piscar de olhos com aquele brilho no olhar de mulher satisfeita àquele do olhar discreto e sedutor de ontem, novamente sentado na mesma mesa onde na véspera tudo começou.
O olhar discreto e sedutor percebe, levanta-se, caminha esplanada fora, certo do caminho acordado para ponto de encontro, enquanto ela pensa:
- " Benditos trinta ... a avozinha sabia... " -
Também aquele olhar quente, entre dois piscar de olhos sussurrado pelo canto dum olho bem treinado e com aquele brilho no olhar de mulher satisfeita, não escapou ao olhar mais experimentado que seguiu o tal do olhar discreto e sedutor - só não vê quem não sabe, ou quem não quer ver, mas está bom de ver, que este vê e quer ver e, por isso viu no sedutor o que lhe parecia um estuão, na sua ânsia pela repetição do toque apaixonado das suas mãos naquele corpo perfeito de mulher e não lhe escapou o pensar:
- " Bem dizia a minha avozinha que a mulher é mulher mulher depois dos trinta!" -

Walter Ramalhete.
Figueira da Foz, 24 de Janeiro de 2025.
Este texto foi escrito segundo a ortografia anterior ao actual (Des)Acordo Ortográfico. Reservados todos os direitos de autor.®

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