Onde moras?

- Onde moras? - perguntaste-me.
- Onde moro? Parece uma pergunta de resposta fácil, mas não é! Onde moro? Estava tentando a responder-te que moro quase no fim duma avenida principal, a Avenida Caminho da Vida, não sei precisamente onde nela moro, não sei o número da porta, nem o código postal. Sei que essa avenida tem muitas ruas transversais e travessas, tem também ruas perpendiculares, ruas paralelas, tem guetos e largos adjacentes e tem até muitos becos sem aparentes saídas.
Encontras-me, quase sempre, numa transversal conhecida pela Rua das Divagações, enrolado em muitos porquês. Porquê isto, e porquê aquilo? - a esmo pergunto-me sempre que lá me encontro.
Também poderás encontrar-me numa rua paralela à Avenida do Passado que é a Rua da Saudade, esta rua é muitíssimo frequentada, e aqueloutra, a tal Avenida do Passado fica atrás da Rua do Presente. Retornando à Rua da Saudade e às saudades em geral, elas são inumeráveis e também inexplicáveis, nela ou nelas tenho saudades de quase tudo o que vivi, parece absurdo, mas não é. Tenho até saudades daquilo que sei que poderia ter vivido e não vivi.
O tamanho da Avenida do Passado varia de pessoa para pessoa e, pessoas há, que se recusam a abandoná-la, essas são geralmente muito saudosistas, este sentimento chega a ser doentio.
Pode dizer-se que a Rua do Presente fica entalada entre a extensa Avenida do Passado e a projectada Rua do Futuro. A Rua do Presente é uma rua muito curta, porém, muito movimentada, cheia de incertezas, enganos, decepções, frustrações e preocupações esgotantes, nela vive-se num corre corre que no final das contas nem parece ser vida e, para piorar tudo isso, ninguém consegue viver nela mais do que as vinte e quatro horas de cada dia.
Por vezes, atrevo-me em pensamentos a entrar de viés na área reservada à Rua do Futuro, mas confesso que não sou muito dado a esse adivinho exercício por ele ser muito incerto e imprevisível e, também por aquela rua ainda não se encontrar urbanizada, pois, o seu traçado é incerto e especulativo, embora já se saiba com certeza absoluta que confinará com o Quarteirão do Cemitério. Quarteirão no qual não me apraz sequer pensar, nem tão-pouco dele aproximar-me.
Aquela Avenida do Passado é recortada pelas imensas ruelas das memórias, elas poderiam enfileirar-se numa só avenida - como se faz com as pérolas enfiadas nos colares das senhoras - mas a dificuldade está na escolha do nome a dar-lhe: Avenida dos Remorsos? ; do Arrependimento? ; dos Sentimentos de Culpa? ; do Pecado da Vida Desperdiçada? ; da Cobardia, eu sei lá... tantos, tantos são os motivos capazes de levarem-nos a desperdiçar, a malbaratar a vida!. Houve quem tivesse sugerido chamar-lhe Estradão Infinito da Memória, mas não mereceu vencimento porque elas são muito mais do que memórias, elas são, ou foram instantes, sentimentos, rios de prazeres, autoestradas vivas, pujantes de movimento, cores, sensações, sonhos, choros e, imaginem! ..., decepções inúmeras - só essas memórias encheriam de ruelas, ruas e avenidas uma mega metrópole, passo a redundância apenas porque não é exagero, exagerar tanto assim.
É perdido e achado nelas que passo a maior parte do meu tempo e, é também nelas que me poderão surpreender com um sorriso nostálgico na face, ou uma lágrima a rolar-me pelo rosto abaixo, ou acharem-me feliz aos saltos gargalhados sem fim.
É também aí que me encontrarão ainda bebé, ou na minha primeira memória de mim, ou menino, ou rapaz, ou rapazote, ou adolescente, - adolescente não, porque roubaram-me a minha adolecência, mas agora não quero falar disso - ou adulto, ou homem , ou, ou, ou ..., ou até o velho esfrangalhado, sem eira nem beira, perdido de mim e perdido dentro de mim em que uma ou outra vez me transformo por instantes, sem saber onde estou, nem donde sou, ou sequer onde moro!
Ó meu Deus! O Beco da Lucidez é muito doloroso, deve ser por isso que a maioria prefere mourejar por períodos de vinte e quatro horas seguidas e a seguir repetidas na Rua do Presente, alienadas de quase tudo e, deve ser também por isso que muitos velhos se escondem e até desaparecem para sempre na Avenida do Passado - a medicina usa chamar a isso doença de Alzheimer.
Onde é que eu moro? - perguntaste-me.
Encheste -me a cabeça de caraminholas. Contrariamente ao que parece, não é uma pergunta de fácil resposta.
Afinal onde é que eu moro? - pergunto sem saber responder-me! Poderá acontecer que eu more nelas todas?!!!

Walter Ramalhete.
Figueira da Foz, 5 de Fevereiro de 2025.
Este texto foi escrito segundo a ortografia anterior ao actual ( Des) Acordo Ortográfico.
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