Ora Elsa!

- Bom dia Aparecida! – disse-lhe eu. Ela lá estava no seu poiso habitual, perdida no seu olhar distante de pensamentos a baloiçarem nas ondas do mar das suas memórias.
- Bom dia amigo Sumido, é com agrado que os meus bons olhos o vêm! –respondeu-me cordialmente.
- Hoje o nosso comum amigo mar está muito alterado? – perguntei-lhe com o propósito de desatar a conversa.
- Está! – respondeu-me. Hoje está com humores de empurrar os peixes para o fundo e está com ganas de chocalhar os barcos até eles vomitarem enjoados. Está a espumar de raiva. Está a brigar com o vento que igualmente retalia com enorme raiva.
Olhei para ele com mais atenção e, de facto, não parecia nada amistoso, enquanto o vento retrucava e tentava derrubar tudo o que lhe aparecia à frente. Também as ondas se desentendiam entre si e embatiam com violência indisfarçada umas contra as outras enquanto soltavam estrondos de raiva e de dor. Algumas deixavam escapar lágrimas brancas de espuma vaporosa que rapidamente engoliam. Nos acessos de maior violência ele galgava rapidamente a areia da praia e arrastava-a à força, pelos cabelos, para dentro de si. Mau! Com evidente maldade tragava rapidamente a indefesa e incauta praia; não havia vivalma que hoje se aventurasse a dirigir-lhe uma só palavra; esconderam-se os pescadores e esconderam-se também as suas canas; as aves não se atreviam a sobrevoá-lo - era temeroso o respeito; as mulheres vestidas de negro alma oravam incessantemente, suplicavam para que a divina intervenção o acalmasse e salvasse os filhos e os maridos desprevenidamente apanhados na sua súbita fúria.
- O que é que se passa minha amiga Aparecida, o que é que o transtornou assim? – perguntei-lhe muito assustado.
- Ele é mesmo assim! –disse-me impávida. Ele é de luas: umas vezes cheio de impaciência quando ela está igualmente cheia e, outras vezes, calmamente raso de raiva minguante quando ela também mingua no seu quarto; já o conheço demasiado bem; já há muitas luas que o conheço. Até já o considero um amigo. Como amigo, respeito-o. Sempre o respeitei. Todos nós temos os nossos dias menos bons. Todos nós temos as nossas azias ocasionais e nessas alturas é assisado deixar-mos estar e deixarmo-nos estar, porque passada a lua também muda a maré e depois já nada é o que era. Tudo passa neste constante recomeço. A vida é um constante recomeço até ao fim!
- É verdade minha amiga Aparecida! – disse-lhe. Às vezes basta esperar pacientemente que a lua mude para a tempestade passar porque nada mais podemos fazer.
Depois, perdidos de nós, mergulhámos nos nossos pensamentos enquanto com respeito fazíamos companhia àquele nosso comum amigo cheio de vida, furioso, incontido, impaciente e inclemente que esgaçava e rasgava as próprias roupas. Ele jamais aprenderia, estava-lhe na natureza. Ele era mesmo assim, era de luas!

“Ora Elsa!”, Figueira da Foz, 20 de Dezembro de 2019.

* Este texto, foi escrito segundo os termos da ortografia anterior ao recente (des)Acordo Ortográfico.

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