Os caprichos da escrita

Não escrevo sempre quando quero, é a escrita que vem a mim e... só vem quando ela quer. É a escrita que me procura quando necessita de espairecer, de descomprimir, ou simplesmente vadiar nas intermináveis paisagens brancas de papel, frias e limpas como a neve. Enfim, ela usa e abusa de mim - é muito interesseira, eu sei, - e eu parvinho como um gato desocupado enrolado numa bola de pêlos, submeto-me a ela, aos seus caprichos e devaneios sem rumo nem propósito. Como dizia, eu não escrevo sempre quando quero, nem o que quero e nem como quero, escrevo como consigo, escrevo como me dá escrever, escrevo com brio, mas sem brilho, escrevo a preto baço. Se não sou um pau mandado, sou um lápis, uma esferográfica ou um teclado bem mandado quando lhe disponibilizo a minha dextra para que ela forme carreiros de letras surdas, mudas e imóveis, mas que no final ... resultam cantantes, cheias de sons e movimentos, coloridas de todas as cores incluindo a preta que delas é a rainha, que maravilha prodigiosa a escrita é. Eu não. Eu junto muito as letras, engordo as palavras, estico as frases até parecerem comboios desmesuradamente compridos, entremeadas de sujeitos secundários e mais até do que secundários, ou nem sequer isso... muito menos, a esfumaçarem em barda do esforço, e constantemente aos gritos comunicantes, eu vou aquiiii!!!, eu vou aquiii!!!, parece que vão com medo de se perderem uns dos outros -uso até chamar-lhes locomotivas- complico-lhes os caminhos com longas linhas curvas, ora à direita, ora à esquerda - nas únicas alturas em que o primeiro sujeito e o último complemento se vêem perfeitamente - vêem-se numa algazarra sem fim, chouc, chouc, chouc.... uuuhhh!!! uuuhhh!!! uuuhhh!!! Ela não. Ela é elegante -do tipo da escrita com aparo fino-, é parcimoniosa nos adjectivos, usa frases curtas de múltiplos sentidos, usa autênticas delícias inteligentes, usa indirectas, usa trocadilhos, usa todas essas coisas da escrita à moda da escrita atinada... Eu não. Eu sou nela muito atabalhoado. Há dias encarapitei-me! Escrevi à bruta. Escrevi à pressa, perdi a linha após linha, perdi a compostura, comecei a meio e com letra minúscula e... também não lhe encontrei o fim, nem a refreei, não houve pontuação que lhe valesse, estava completamente perdido, perdi-lhe o norte e os restantes pontos cardeais, enrolei-a como a uma fartura na Noite de São João a escorrer óleo a ferver, lambuzada de açúcar e canela, mas satisfiz-me, disse para mim mesmo enquanto lambia os dedos: que escrita saborosa, está no ponto, até o papel pardo que a condiciona condiz bem com a canela dela, condiz às mil maravilhas. Ela não. Ela quando fica insatisfeita risca com frenesim a folha de papel, chega a furá-la de tanto a riscar, põe vírgula e tira vírgula, recomeça a frase ao contrário, vira-a do avesso, parece desinspirada, arranca a folha, amassa a folha em bola, atira-a para o cesto dos papéis, depois arrepende-se, sente remorsos, vai buscá-la, alisa-a quase com carinho, pede-lhe mil perdões, depois desespera e, por fim, grita a plenos pulmões: hoje não é dia!!!! e rasga a folha em pedacinhos. Eu não. Quando não é dia, não é dia. Pronto e ponto! Ela não. Ela não! Ela não... nem pronto, nem ponto!

Walter Ramalhete.
Figueira da Foz, 27 de Março de 2024.
Este texto foi escrito nos termos ortográficos anterior ao actual (Des) Acordo Ortográfico.
Reservados todos os direitos de autor.®

COMENTÁRIOS

ou registe-se gratuitamente para comentar.
Critérios de publicação
Caracteres restantes: 500

mais

QUEM SOMOS

O «Figueira Na Hora» é um órgão de comunicação social devidamente registado na ERC (Entidade Reguladora para a Comunicação Social). Encontra-se em pleno funcionamento desde abril de 2013, tendo como ponto fulcral da sua actividade as plataformas digitais e redes sociais na Internet.

CONTACTOS

967 249 166 (redacção)

geral@figueiranahora.com

design by ID PORTUGAL