Povo que cai descalço

Há uma corrente na cidade que concorre com as correntes marítimas a favor da racionalização dos eventos culturais ou, numa variação em ré menor, pelo menos a favor de uma conciliação de calendários que evite a sobreposição de iniciativas. Argumento: há eventos a mais para uma cidade tão pequena. Discordo e contra-argumento: há público a menos, sofás a pote e uma memória já muito distante das portas que abril abriu.
A cultura nunca é demais. O princípio solene, reafirmado numa esplanada da avenida, na presença do sol, astro-rei, e da imperial, déspota no império dos tremoços, traz filosofia ao entardecer. Reparo que o teu olhar se fixa num ponto distante, telhando de anil a curva delicada dos teus lábios, fechados, guardando pensamentos por confessar.
A cultura quer-se livre, descomprometida e incómoda. Quando não incomoda, é subserviente. E uma cultura subserviente é como uma imperial sem gás: bebe-se, mas não agita. Programe-se, calendarize-se, mas acima de tudo eduque-se. O problema é mais lato e mais antigo: apatia. Um povo adormecido, acrítico e acéfalo nunca será um povo livre. O sonambulismo da cidade, face a uma esforçada dinâmica cultural, patrocinada quer pelos órgãos do poder local, quer pelo meio associativo, preocupa.
44 anos depois daquela manhã clara e 50 anos depois do maio de 68 ninguém sai à rua, ergue uma voz ou uma bandeira. Vivemos acomodados, quietos e quedos, aguardando que por cima das bandejas venham mais imperiais, talvez tremoços, e que a espuma da cerveja desmaie sobre os teus lábios, semiabertos, a sorver a minha indignação.
Façamos guerra: contra a acomodação e o excesso de individualismo, marchemos sobre todas as atividades culturais, umas por cima das outras, com ou sem público, sem medos ou receios, até à vitória final. Nos intervalos das batalhas façamos filhos. Porque, ao fim e ao cabo, um filho é o melhor público da arte: inquieta-se e questiona. Goza ainda da liberdade pueril de dizer “não gosto”. Tiremos, por isso, os filhos de casa e levemo-los ao teatro, à música, à dança, aos livros e às pevides em dias de sol quase posto.
Como Caeiro, somos do tamanho do que vimos e eu tinha um tio que, à porta da taberna, se gabava de ter as maiores laranjas da aldeia. Um dia, convencido por um tinto mais espirituoso, visitou os quintais vizinhos e foi aí que descobriu que as suas laranjas não passavam de pequenas clementinas. Deixou de beber e morreu de vergonha. Depois desta história, já o teu sorriso acendera em mim desejos revolucionários, mais uma imperial, um pires de tremoços, e eis senão que te aproximas de mim, um aroma fresco a flores do campo, e os teus lábios deitam-se sobre os meus.
A tua boca sabia a cerveja, num espumado de malte e sal, e já não te falei desse povo que cai descalço, nem da música dos Dead Combo, porque valores mais altos se levantaram.

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