Rio-me de mim e do rio que me leva a vida na sua corrente abaixo. Leva-ma a correr sem me socorrer.
Leva-me com indiferença, leva-me quer eu queira quer eu não queira ir na sua correnteza!
É-me já longo o rio percorrido, por isso julgo curto o segmento restante - nada sei!
Olho para lá, olho para diante, estreito o olhar, quebro com a mão em pala a claridade que me cega, ponho-me em bicos nos pés, mas não sei se me está longe, se perto, a sua foz.
Na louca correria da descida do rio rio-me dele e nele e da vida e na vida à medida que novos companheiros nos são acrescentados: - Bilu, bilu, tem os olhinhos como os do papá! - Ah! Mas no sorriso é todo mãe! E depois chega o segundo e o terceiro chega por desatenção, mas é também muito bem-vindo.
Entrou a vida no percurso dos casamentos, dos baptizados, das festas de aniversário... - e p′ó menino Pedrinho uma salva de palmas - e na dos sorrisos felizes nas fotos para mais tarde recordar e é muito alegre esse limitado percurso da descida.
De repente, depois dum cotovelo enorme, parecia até que o rio queria recuar, eu com tristeza baça no olhar e com o álbum das fotografias nas mãos, olho para elas e constacto que muitos daqueles sorrisos já não estão cá - começou o troço dos funerais - mas agora ainda me rio mais de mim e do rio que me leva a vida na corrente dele abaixo porque sem dar-me conta já passaram 35 anos: - Bilu, bilu, tem os olhinhos da avó! - Ah! Mas no sorriso é todo avô! Aprendi que nada mandamos, nem "desmandamos", nesta corrente que nos leva nela rio abaixo. Entretanto morreu o nosso passarinho. Entre lágrimas e dores prometemos-nos: - Passarinhos nunca mais! Deitámos fora a gaiola. Passarinhos e gaiolas nunca mais! Reforçámos convictos esta promessa. Dias depois a minha sogra foi hospitalizada e... coube-nos a nós acolher vitaliciamente o passarinho dela, sem margem para um não. Por isso nunca digas nunca! Levado vou cantando, rindo e chorando, vou, vou e vou sem outras margens senão as deste implacável rio!
Sempre ouvi dizer que a foz tem cheiros inconfundíveis e que, por vezes, faz-se anunciar já demasiado próxima - felizes desses a quem ela se anuncia assim, invejo-os! Outras vezes, muitas, até demasiadas, ela anuncia-se com antecedência de anos de sofrimento, como se fosse um formigueiro a esquartejar-lhes o corpo para caber todo na sua dispensa.
Confesso, não sinto ainda nenhum dos cheiros da foz e, tampouco lhe oiço os sons característicos, mas pode o cúmplice vento encobri-la por não estar de feição. Será que estará ela comigo e com o rio já desavinda? Não sei! Ela é caprichosa, e muito pontual também.
Correm as águas do rio e eu nelas sem nada poder, senão deixar-me levar... é assim a correnteza que nos comanda a vida da nascente até à foz.
Rio-me de mim e do rio que me leva a vida na corrente dele abaixo. Leva-ma a correr sem me socorrer.
Walter Ramalhete.
Figueira da Foz, 28 de Fevereiro de 2025.
Este texto foi escrito nos termos ortográficos anteriores ao actual (Des)Acordo Ortográfico.
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