Sonhos esculpidos com letras

Esculpo as minhas palavras letra a letra. Uma esferográfica na minha mão é forte como um cinzel na mão dum escultor. A folha de papel branco neve é a minha pedra, umas vezes suave, outras vezes tão dura quanto só a vida é.
Nelas deito-me e sonho. Levito na suavidade da dança dos corpos sem peso. Danço sonhos. Vou. Voo no meu destino certo, mas que desconheço.
Homens com os olhos incendiados de sangue, morte e destruição, decidem nas minhas costas contra a minha vontade, não sonham, não voam, não levitam. Esculpem fome, gritos, dor, destruição e morte, são todos farinha do mesmo saco: uns disfarçam-se de pombas brancas; outros prometem virgens num paraíso só deles, e, todos juntos já abriram a Caixa de Pandora e, todos juntos, estão a prepar-se para repetir "Hiroximas" em toda a parte, "Hiroximas" exponenciadas a dez e, talvez, até a mais - não imaginamos, sequer, aquilo que são capazes.
Do meu branco neve de sonhos, exalam aromas suaves das pétalas de flores de verdes crus; de rosas ora suaves, ora fortes vivazes que exalam aromas rosas como só elas conseguem exalar; outras exalam aromas amarelos sol dos verões fortemente convictos, daqueles dos que bem-me-querem; lá do alto, de muito alto, exalam os aromas dos azuis claros e escuros rasantes nos céu dos pássaros felizes e, dos cantos livres da pureza simples dos aromas multicolores dos arco-íris exalam miscelâneas aromas irrepetíveis,
e,
eu,
louco,
impotente,
eu que não vou no canto da paz dessas falsas pombas,
nem nos falsos paraísos das recompensas com inocentes virgens ...
eu,
que vejo-me em pé,
com os olhos desvendados,
para quem me quiser ler,
ouvir,
beber...
não sei!!!!,
eu,
que escrevo-me e declamo-me nos meus inofensivos e inocentes sonhos, borrões a azul ou a preto nas minhas folhas brancas, pedras, neve, donde saltam, na cor com que estiver a escrever, amores que não conheceram sol nem noite - pergunto-me se eles terão existido, ou se serão somente manias minhas? Nelas -nas brancas papel, pedra, neve- descarrego sonhos e não mentiras, sonhos mais verdadeiros que todas as mentiras que tantos iludidos têm por verdades absolutas!
Eu também ouço sonhos doutros sonhadores, como aquele sonho maravilhoso do José Cid - "10 000 ANOS DEPOIS ENTRE VÉNUS E MARTE" e também leio os sonhos do Neruda, do Zeca Afonso, do ONDJAKI e de tantos outros; também choro o Lorca a declamar o seu poema à frente do inclemente pelotão de fuzilamento; choro Anne Frank; choro os reféns do dia 7 e as vítimas inocentes da vingança cega do dia 8 e seguintes até hoje; também choro os soldados ucranianos e os soldados russos obrigados a caminhar para uma morte certa e horrível que não queriam, não escolheram, e que nunca escolheriam...
e,
impotente,
abomino,
os senhores mandantes das guerras que querem assim e precisamente ali, e só porque sim, só porque lhes convém!!!
Confesso-vos que o meu sonho maior é viver num mundo também cantado e bailado pelos pássaros livres;
pelos casais de mãos nas mãos apaixonadas a passearem-se;
cheio de muitos miados à noite;
macio como os coelhos peludos;
quentinho;
com os dias corridos com a pressa das tartarugas espojadas ao sol;
sem guerras;
sem fome;
onde as armas fossem definitivamente substituídas por pão e manteiga,
entre outras fartas guloseimas, suficientes para todos.
Então sim, então eu abriria as portas à minha criança e declamaria João de Barros, aquele ilustríssimo poeta figueirense que "poemou" assim:
" Aquele mar da minha infância
bom camarada e meu irmão...
.... ....
eu sorrirei calmo e contente
se ouvir e vir, perto, bem perto
o mar fraterno, o mar eterno, o livre mar "
Até esse ansiado dia... , a minha mão não se calará, esculpirei letra a letra os meus sonhos, com a minha esferográfica de aço forte, no macio papel pedra, branco puro, neve, onde a minha criança crescerá livre, brincará e conviverá com as iguais sem qualquer receio.
"Bora lá", traz a tua criança também! Estamos em Abril - há 50 anos, o mês da liberdade! Vem esculpir, escrever, desenhar, cantar, declamar, bailar e viver os teus sonhos!
NB: Porque é ABRIL!, dedico este texto à criança minha amiga, Fernando Iglésias, que há dois anos escolheu Abril para encetar a viagem do son(h)o maior. Forte abraço amigo Fernando!

Walter Ramalhete.
Figueira da Foz, 15 de Abril de 2024.
Este texto foi escrito nos termos ortográficos anterior ao actual (Des) Acordo Ortográfico.
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