A recente detenção do presidente da câmara de Istambul suscita um debate sobre a deriva autocrática que a Turquia tem vindo a atravessar sob a égide de Recep Tayyip Erdogan. Embora muitos considerassem improvável que as tensões políticas entre o governo central e a administração local atingissem tal nível de repressão, o episódio confirma a perceção de que as liberdades democráticas se encontram seriamente ameaçadas no país. Esta situação não é um evento isolado, mas sim o culminar de anos de políticas centralizadoras e de silenciamento de vozes dissidentes. Quem acompanha a evolução política turca reconhece um padrão de concentração de poder que evoca o passado imperial e reforça a tese de que Erdogan molda o Estado à sua imagem, ignorando a pluralidade de opiniões e a salvaguarda de direitos básicos.
É notório que a popularidade de Erdogan se construiu sobre promessas de estabilidade económica e orgulho nacional, mas, ao longo do tempo, o discurso que outrora apelava a uma ideia de renovação foi transfigurado. O presidente turco passou a recorrer a métodos questionáveis para garantir a continuidade do seu projeto político, encontrando, no controlo sistemático das instituições, a via mais direta para eliminar os adversários. A detenção do presidente da câmara de Istambul, que fora eleito democraticamente, revela a instrumentalização do sistema judicial e a quase ausência de garantias de imparcialidade, pondo em causa a credibilidade dos processos legais. Embora as autoridades turcas argumentem que se trata de um procedimento legítimo face a alegadas irregularidades, torna-se difícil não ver aqui uma manobra para suprimir um oponente político popular, que desafiava a hegemonia do partido no poder.
A estratégia de Erdogan assemelha-se, sob vários aspetos, à organização burocrática que vigorava no tempo do Império Otomano, em que a figura do sultão detinha o controlo total sobre as instituições. Da mesma forma, o atual presidente reforça a sua influência em cada esfera de poder, moldando a política externa e interna ao serviço da sua agenda. Esta referência histórica sublinha a ênfase no poder unipessoal, na manipulação do discurso patriótico e no recurso constante a valores tradicionais para justificar medidas restritivas. Observa-se uma espécie de “Erdoganização” da Turquia, na qual os pilares centrais da democracia (liberdade de imprensa, separação de poderes e pluralismo político) são progressivamente apagados em benefício de uma liderança carismática, mas pouco tolerante.
Este processo já vinha a ser manifestado há vários anos, através de inúmeras ações contra jornalistas, académicos e personalidades públicas que ousavam exprimir discordância face ao governo. A tutela estatal sobre a comunicação social ampliou-se, enquanto as vozes independentes eram asfixiadas por processos judiciais ou intimidações veladas. O entusiasmo popular que sustentou Erdogan na primeira década do seu poder esmoreceu, sobretudo nas zonas urbanas e mais educadas, cujo eleitorado preza valores europeus de participação cívica e respeito pelos direitos humanos. A detenção do líder municipal de Istambul reforça o clima de receio, desencorajando manifestações e protestos que, em 2023 e 2024, visavam denunciar a crescente militarização das forças de segurança.
A Europa, outrora vista como um bastião de princípios democráticos, não se tem apresentado unida nas reações a esta faceta autoritária turca. Alguns governos europeus manifestam desagrado e condenam retoricamente estes atropelos, mas as relações económicas e as negociações sobre os fluxos migratórios acabaram por gerar um impasse diplomático. Erdogan, ciente desta dependência mútua, aproveita as ambiguidades existentes no diálogo com a União Europeia, perpetuando a sua margem de manobra interna. Esta condescendência internacional, para muitos analistas, transmite a ideia de que a Turquia pode continuar a reprimir a oposição sem enfrentar repercussões severas, o que incentiva novas investidas contra figuras públicas incómodas.
É da minha convicção que, ao olhar para a história moderna turca, vemos um país que, apesar de tudo, sempre ambicionou encontrar um ponto de equilíbrio entre a herança otomana e as aspirações democráticas. O legado de Mustafa Kemal Atatürk, fundador da república e símbolo do secularismo, ainda ecoa no imaginário coletivo, embora enfraquecido pelas correntes conservadoras que ganharam ímpeto nas últimas duas décadas. A “Erdoganização” representa, assim, uma reinterpretação do poder, na qual o líder de Estado se constrói como figura paternal, carismática, mas agressiva na proteção dos seus interesses e, simultaneamente, reivindica uma tradição imperial que lhe outorga uma legitimidade histórica.
Perante estas circunstâncias, o destino da Turquia depende do grau de coerência e persistência das forças políticas que se opõem ao rumo tomado. Muitos cidadãos turcos mantêm um forte sentido cívico e criticam o agravamento do autoritarismo, procurando, por via legal, formas de expressão política que escapem ao controlo das autoridades. A existência de uma diáspora significativa na Europa também pode contribuir para a defesa de valores como a liberdade e a justiça, divulgando relatos e promovendo debates internacionais. No entanto, a falta de unidade entre as correntes opositoras e a desproporção de meios em comparação com o governo dificultam avanços mais firmes.
É certo que o futuro da Turquia continua incerto. A detenção do presidente da câmara de Istambul é um episódio simbólico: enfraquece ainda mais a credibilidade do processo democrático e assinala que Erdogan não hesitará em usar todos os recursos ao seu dispor para se perpetuar no poder. A evocação do passado imperial, reconfigurada aos moldes do presente, permite-lhe manter um discurso de grandeza nacional e legitimidade histórica, silenciando qualquer tentativa de contestação. No entanto, não devemos ignorar a determinação de quem se recusa a aceitar a consolidação de um regime autoritário. A história ensina-nos que episódios de repressão, por mais intensos que sejam, encontram sempre resistência, sobretudo num país com uma identidade multifacetada e uma população ávida de reconhecimento internacional.
Bruno Santos
(Licenciado em Estudos Europeus. Atualmente estudante da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra)
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