A arte pode ter uma capacidade transformadora única ao desafiar as nossas visões pré-estabelecidas do mundo e sobretudo ao confrontar essas percepções, muito pessoais, com outras perspectivas culturais, religiosas e individuais. Eu acredito na arte que explora temas controversos ou tabus, que inspira discussões saudáveis mesmo entre aqueles que têm visões divergentes e que, consequentemente, pode estimular e desenvolver a tolerância e a compreensão. Deste modo, o desconforto pode ser visto como um ponto de partida para o crescimento pessoal e para a construção de uma sociedade mais inclusiva.
Estarão todos preparados para ter esta discussão sobre o papel da arte? E sobre a inclusão? Talvez não. Nos últimos dias assistimos a uma grande onda de indignação em torno da recriação de uma grande festa pagã ligada aos Deuses do Olimpo na cerimónia de Abertura dos Jogos Olímpicos de Paris que criou insatisfação e revolta muitas pessoas ligadas à cultura cristã. Ora, Paris acolheu o Jogos Olímpicos este ano, e, a cerimónia de abertura deste evento, quer muitos queiram ou não, tem a sua narrativa que não depende, obviamente, das crenças muito pessoais de cada um. É uma cerimónia de cariz mundial organizada por um país que concedeu passaporte a três palavras e conceitos de enorme importância, e que deveriam ser os pilares da sociedade mundial: Liberté, Égalité, Fraternité.
Quem organizou explicou a sua narrativa. Perante o esclarecimento dos criadores, as pessoas são livres de gostar ou não do que foi descrito. Todavia, a forma como alguns católicos têm esgrimido as suas opiniões, entra inevitavelmente em conflito com a doutrina católica.
Não estamos no século XIX e a inclusão já não pode ser apenas um conceito reduzido apenas a pessoas com limitações físicas. Deve ser um princípio fundamental que abrange todas as formas de diversidade humana. A inclusão é, na sua essência, uma expressão de amor — um amor que não julga, mas que acolhe, valoriza e celebra todas as pessoas. Não era isto que defendia Jesus? Muitas religiões, cada uma com as suas particularidades, partilham a ideia central de que o amor ao próximo e a inclusão são fundamentais para a vida espiritual e moral: catolicismo, budismo, hinduísmo, islamismo, siquismo, bahá’i, etc.
Isto significa criar espaços onde todas as pessoas se sintam bem-vindas, respeitadas e valorizadas por quem são. Drag queens e travestis, por exemplo, representam importantes expressões de identidade e cultura dentro da comunidade LGBTQIA+. Como pode um cristão insurgir-se contra a presença da comunidade LGBTQIA+ nesta cerimónia de abertura? Tendo eu tido uma educação católica, choca-me assistir a tão pouca empatia pelo nosso semelhante. O amor ao próximo, afinal, durou muito pouco. Só vigorou dentro das igrejas e da boca para fora, porque bastou um evento para estalar o verniz de muitos daqueles que vão todos os domingos à missa e que defendem o amor ao próximo e “os direitos iguais para todos”. “O sol quando nasce é para todos” é um provérbio da cultura portuguesa, que transmite a ideia da universalidade e da não discriminação, da acessibilidade para todos apesar das circunstâncias pessoais, mas o que constatei nos últimos dias nas redes, é que para muitas pessoas e, algumas católicas, só alguns é que podem ter o direito a ter o seu espaço na cultura, na religião e nas televisões de todo o mundo. Haverá maior hipocrisia do que esta de espalhar a ideia do amor ao próximo e, simultaneamente, excluir pessoas devido a questões de género ou pela aparência?
A inclusão é a expressão máxima de muitas religiões, nomeadamente da religião católica. E aqueles que têm dificuldade em aceitar a única interpretação da palavra, ainda não perceberam nada sobre a religião católica. Muitos confundiram a analogia e extravagância do Festim dos Deuses com a mesa da última Ceia. E apesar disto já ter sido clarificado por quem de direito, é mais fácil continuar a derramar a exclusão que alimenta o que povoa as mentes de muitos católicos. Todavia, esses, não devem ter ido à catequese nem à missa nos dias em que foi explicado que se houve alguém que personificou a inclusão foi Jesus, quando sentou à mesa o Judas (que o traiu e entregou às autoridades religiosas) e Pedro (que O negou 3 vezes e que foi o 1º Papa da Igreja Católica). Jesus escolheu-os e sentou-se à mesa com eles. Jesus escolheu os mais fragilizados e marginalizados e juntou-se a eles. Hoje, se viesse à Terra, Jesus iria seguramente chamar a si os discípulos que mais sofrem com o estigma, com a violência e a exclusão social – entenda-se: com os que praticam estes actos, e com os que sofrem. Por serem travestis são indignos e merecem ser afastados de Jesus? E como tal, não deviam ter espaço na cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos? Os ensinamentos de Jesus apregoam o amor, a misericórdia, a justiça e o perdão. Jesus não apregoou a hipocrisia: é o comportamento em que se afirmam e promovem princípios, valores ou crenças que não são seguidos ou aplicados na prática pelo próprio indivíduo. Afinal em que ficamos? Aprenderam os ensinamentos de Jesus ou é tudo fachada? Somos todos bons católicos porque até vamos à Igreja e apregoamos umas coisas, ou somos bons católicos porque apregoamos e aplicamos no dia-a-dia de forma íntegra o que defendemos? Não existe o “meio católico inclusivo só em alguns casos” por pressão social, necessidade de manter uma imagem pública positiva, ou limitações perceptivas. A forma como muitas pessoas reagiram a esta cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris 2024 diz muito mais sobre as suas percepções pessoais, do que sobre a cerimónia em si.
Vamos falar também sobre um pouco de Ciência? Do ponto de vista da neurociência, a percepção de cada pessoa é moldada por um complexo interplay de experiências sensoriais, processos cognitivos e influências culturais. O cérebro processa as informações com base nas memórias passadas, crenças pessoais e o contexto social em que estamos inseridos. Estes factores resultam em percepções que são, muitas vezes, subjetivas e tendenciosas. Pode ser um processo perigoso quando falta a tolerância, pois a percepção distorcida pode levar a opiniões baseadas em preconceitos, discriminação, estigmatização, violência e exclusão social. Quando as pessoas se pronunciam sobre os assuntos sem considerar a complexidade dos dados e sem reconhecer as suas próprias limitações perceptivas, aumentam o risco de disseminar desinformação e fomentar divisões sociais.
As questões de género continuam a ser um assunto tabu para muitos. Há crianças que nascem com condições genéticas que afetam o desenvolvimento sexual e hormonal que têm um impacto gigante na identidade de género, o que pode levar a uma desconformidade entre o sexo atribuído ao nascimento e a identidade de género que a criança sente. Não merecem ser tão amadas quanto as outras? O que entendem os opinadores de bancada sobre ciência e sobre a complexidade humana? Esforçam-se por estudar um pouco antes de irem destilar ódio para as redes porque se sentem melindrados com um retrato da sociedade que não compreendem por falta de informação, cultura e de tolerância? Podemos agarrar no exemplo da polémica em torno da cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos e ver aqui uma oportunidade para reflectir sobre as nossas crenças não terem regras duplas criadas pelas nossas próprias limitações? Devemos.
Os que têm flexidade cognitiva desenvolvem mais tolerância e empatia do que os que revelam rigidez cognitiva: pessoa que, mesmo confrontada com novas possibilidades, tem relutância em modificar as suas atitudes. A arte desafia-nos a olhar para além das aparências e das diferenças superficiais. A arte educa-nos para abraçar a complexidade humana com empatia e aceitação.
Para criar uma sociedade verdadeiramente inclusiva, é necessário combater estes preconceitos através da educação, da conscientização e de políticas inclusivas, e porque não através da Arte que saiu do estádio e que desfilou a céu aberto nas ruas de Paris e no Sena? O que vi da cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos abraçou a história da humanidade, como ela é: inclusiva e sem julgamentos. A promoção da inclusão não se pode resumir a uma aceitação passiva. Por muito que isso desafie as mentes mais tradicionais, todas as pessoas deveriam poder expressar-se livremente e sem medo de discriminação ou violência. Que mal vem ao mundo por integrar uma teatralização da comunidade LGBTQIA+ durante 2 minutos de uma cerimónia de abertura que durou 4horas? A igualdade tem que sair do papel e das nossas casas, para as ruas. Não somos doutores da moral de ninguém. Dos excertos que vi, gostei e aplaudo a ousadia duma França que abordou a inclusão e que gera discussões como esta.
Cristina Loureiro
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