Impactos da COVID-19: “temos de ser flexíveis para termos capacidade de nos adaptarmos a um mundo em transformação” – diz o psicólogo Paulo Cunha

A crise pandémica tem vindo a impactar negativamente na vida dos portugueses das mais diferentes formas. Em paralelo à questão económica, equacionam-se os efeitos psicológicos.
O medo, a incerteza, o isolamento, este novo «normal» são questões abordados numa conversa entre o Figueira Na Hora e o figueirense Paulo Cunha, Psicólogo Clínico.
O Director Clínico da Mental School é o actual presidente da Delegação Regional do Centro da Ordem dos Psicólogos Portugueses.

A crise pandémica veio alterar completamente comportamentos da e na sociedade. De que forma é que este medo que circula em alguma faixa populacional interfere nas relações inter-pessoais?

Importa recordar que o medo é necessário, é um elemento protector e que nos permite sobreviver ao perigo ou ameaça. É importante a gestão deste medo, não sendo o mesmo em excesso, pois é nesse momento que ele se torna não adaptativo e, portanto, desadequado. Neste sentido, é natural que o medo interfira nas relações interpessoais; é até desejável que, em alguns casos, isso aconteça.
Nunca é demais sublinhar que uma das condições para ultrapassar a pandemia do SarsCov-2 é exatamente através do distanciamento social. Logo têm que se alterar padrões de relação interpessoal. Deve haver também a consciência que estas alterações são circunstanciais (devido à pandemia) e sempre acompanhadas de compreensão e bom senso.

E em sentido contrário? Há quem rejeite a presença do vírus. Esta amplitude de comportamentos cria cisões na micro-sociedade?

A divisão ou dualidade de opiniões sempre fez parte do crescimento das sociedades. Obviamente é uma preocupação para a classe científica, já que o negacionismo pode criar barreiras ao papel da ciência. A ciência aplicada à saúde existe para salvar vidas. É mais sensato aceitar a existência do vírus e seguir as recomendações das autoridades competentes para o seu combate.

Quem tem filhos de tenra idade e está em tele-trabalho, muitas das vezes acaba por cair na facilidade de os deixar horas e horas à frente da televisão, nos tablets ou telemóveis.
Este isolamento social – falta de contacto e de conversas – de que forma é que poderá condicionar o seu desenvolvimento?

As tecnologias devem ser vistas como um aliado do desenvolvimento pessoal e profissional. O seu uso deve ser adequado tendo em conta o perfil da criança, maturidade, idade, desenvolvimento, etc. Se estivermos a falar do uso das tecnologias sem propósito e sem regulação, pode ser inadequado.
O mais correcto é sempre a definição de horários para as diferentes actividades, o propósito para cada uma delas acompanhada ou não por uma reflexão (adequada à faixa etária). O tele-trabalho obriga a um processo de regulação e adaptação de espaço e de tempo, não sendo suposto ou necessário o corte de relações ou o abandono de relações familiares.

Neste particular, a Ordem dos Psicólogos Portugueses lança algumas dicas. Tolerância, flexibilidade e expectativas realistas são algumas delas. Mas na prática, como aplicar estas sugestões?

A Ordem dos Psicólogos Portugueses lançou mais de 400 documentos dirigidos a toda a população com recursos de resposta à pandemia, acessíveis a toda a população através deste link.
Respondendo directamente à questão, temos de ser flexíveis para termos capacidade de nos adaptarmos a um mundo em transformação, abdicar um pouco da teimosia individual, da defesa de determinados pressupostos apenas por convicção.
A tolerância, na prática advém da necessidade de termos mais paciência para o outro, para a irritabilidade, falta de paciência e, sobretudo termos todos os dias a capacidade de nos lembrarmos que também nós estaremos mais ansiosos, intolerantes e irritados sem nos apercebermos.
As expectativas realistas são importantes para, na prática, não exigirmos tanto de nós nem dos outros, sem olharmos ao contexto em que estamos e às nossas capacidades ou às capacidades de resposta do outro. A regulação das expectativas nesta fase é muito importante para permitir gerir as frustrações.

O afastamento social interfere, obrigatoriamente, na proximidade. Falemos dos que namoram, que não vivem juntos. Iniciaram uma relação e agora estão privados delas. Que impactos poderá ter num futuro a curto/médio prazos?

A distância social, da qual a proximidade faz parte, é uma forma de comunicação não verbal. O distanciamento (maior ou menor) sempre fez parte das relações amorosas, faz parte do estabelecimento de laços criar adaptar e inovar. O distanciamento pode servir e deve criar respostas que solidifiquem uma relação.

Sabemos bem que existem inúmeras pessoas a passar sérias dificuldades de sobrevivência. Mas a pergunta é noutro sentido.
Está-se em casa com conforto, com diversos canais de televisão e internet e mesmo assim, assiste-se a desabafos nas redes sociais. Haverá algum desfasamento da realidade, daquilo que são os verdadeiros problemas?

Cada pessoa vive os problemas de acordo com a sua própria realidade e a sua realidade advém do que sente, do que vive. É normal a maioria das pessoas viver com maior intensidade os seus problemas; é uma característica inerente ao ser humano, não significando que não sinta empatia por outro tipo de problemas, sabendo que também aí há quem sinta os problemas dos outros com intensidade diferente. Continua a ser uma característica de qualquer ser humano, a individualidade.

Da experiência que tem, qual o impacto desta pandemia naqueles que decorrendo da profissão, lhes tem sido negado o convívio familiar? Será algo que se recupere em curto tempo ou deixará marcas?

Sempre existiram situações, profissões ou tempos que obrigaram à privação das relações familiares. Dou apenas alguns exemplos: forças militares, forças de segurança deslocadas dos locais de habitação, professores deslocados, profissionais de saúde, épocas de conflito militar e desde sempre os migrantes que passam vidas inteiras afastados das famílias à procura de melhores condições.
Depende do carácter traumático da situação, mas também da resiliência de cada um para ultrapassar a mesma. Quero crer que o facto de ser um esforço e um propósito colectivo tornará mais fácil a normalização que cada um fará da situação.

Os portugueses reconhecem a necessidade de recorrer aos cuidados, apoio e ajuda dos/das Psicólogos/as?

Sim, reconhecem, tendo havido um forte incremento na procura de serviços de Psicologia. Cabe-me salientar que mais do que intervir na crise, o mais desejável é a actuação do psicólogo a um nível preventivo.

Quando e se tudo isto passar… «vai ficar tudo bem?»

Vai ter que ficar bem, desde que não se pense em voltar o tempo atrás. Temos de aceitar o medo como nosso aliado para ultrapassar a situação, travar a propagação do vírus, adaptarmo-nos dentro do possível ao momento que vivemos, organizar rotinas, objetivos e organizarmo-nos individualmente e coletivamente.
Um dos segredos está na capacidade de adaptação, sempre foi um dos segredos da espécie humana.

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