O Silêncio dos Faraós

Há lugares onde o tempo não passa, apenas repousa. Saqqara, no sul do Egipto, é um desses lugares. O vento que sopra sobre as pedras secas da pirâmide do Faraó Unas não é o mesmo vento que sentimos em qualquer outro ponto do deserto; é um vento antigo, feito de memórias e de pó. Este sopro quente é o mesmo que recorda aquele que ali acreditou selar a eternidade. Contudo, o que resta é o vazio. A câmara onde o Faraó Unas deveria repousar está vazia. O corpo desapareceu, as oferendas foram levadas, e só as palavras gravadas nas paredes resistiram ao tempo. São os Textos das Pirâmides, a primeira tentativa humana conhecida de garantir, por meio da escrita, a passagem para a eternidade.

Olhar para aquele sarcófago vazio é como encarar a nossa mortalidade. Toda a ambição humana cabe naquele silêncio. Reis que comandaram exércitos, ergueram templos e controlaram o curso do Nilo acabaram reduzidos à poeira que tanto temeram. Nada sobrou senão as suas palavras, entalhadas com devoção nas paredes de pedra. E mesmo essas palavras, por séculos, permaneceram ocultas, cobertas de areia, esquecidas. É uma lição cruel e bela: por maior que seja o poder, por mais alta que seja a pirâmide, tudo o que é obra humana é transitória.

Pensar nisso conduz-nos inevitavelmente à humildade. O que somos diante de cinquenta séculos de ruína? O que valem os nossos títulos, a pressa dos nossos dias, o esforço por deixar uma marca no mundo, quando até os nomes dos deuses mudam com o passar dos milénios? A poeira que cobre as pirâmides é a mesma que um dia nos cobrirá. As diferenças entre o faraó e o pedreiro que lhe talhou a tumba já não existem. Ambos repousam, ambos regressaram ao mesmo silêncio.

É curioso como o ser humano insiste em acreditar que pode escapar à lei do esquecimento. Construímos, acumulamos, registamos, publicamos. No fundo, fazemos tudo o que podemos para deixar um sinal de que estivemos aqui. É o nosso modo de lutar contra o nada. Mas a arqueologia lembra-nos que a eternidade não é um feito humano. A eternidade é do tempo, não do homem. Podemos prolongar a memória, mas nunca vencê-la. Mesmo o ouro dos faraós, símbolo da incorruptibilidade, foi fundido e transformado em outros objectos, em outras vaidades. Nada permanece intacto.

Talvez seja essa a verdadeira dádiva que as ruínas nos oferecem: o convite à reflexão. Quando olhamos para as pedras gastas de uma pirâmide, ou para o vazio de um sarcófago sem corpo, não estamos apenas a contemplar o passado. Estamos a ver o destino comum de tudo o que vive. É por isso que o deserto é o maior dos mestres. Não ensina com palavras, mas com silêncio. Mostra-nos, sem pressa, o que é essencial: que a grandeza não está no tamanho do monumento, mas na serenidade de quem aceita a sua finitude.

A humildade nasce desse reconhecimento. Perceber que não somos mais do que uma breve centelha na imensidão do tempo pode parecer uma ideia triste, mas é, na verdade, libertadora. Liberta-nos da ilusão de grandeza, da necessidade de provar valor, da ânsia de deixar marca. Quando se compreende que até os Faraós foram esquecidos, torna-se mais fácil valorizar o instante presente, a simplicidade, a beleza das coisas pequenas e vivas. A eternidade não está na materialidade, está no gesto, na palavra que consola, na honestidade silenciosa com que olhamos o mundo.

A pirâmide de Unas continua de pé. Desfeita por fora, mas erguida contra o céu como um testemunho do sonho humano de permanência. Ao seu redor, o deserto prossegue o seu trabalho paciente de apagar pegadas e devolver tudo ao pó. E, no entanto, há algo que o deserto não consegue apagar: o sentido que retiramos da contemplação da sua vastidão. Porque enquanto houver quem olhe para essas ruínas e compreenda a lição, o passado cumpre o seu propósito. Ele recorda-nos que o poder é efémero.

No fim, talvez a verdadeira imortalidade esteja nisto: não em sermos lembrados, mas em saber lembrar. Lembrar que somos passageiros, que tudo o que temos é emprestado pelo tempo, que nenhuma «pedra» pode segurar a Alma. A pirâmide vazia do Faraó Unas não é sinal de derrota. É um ensinamento. Mostra-nos que nada somos, e é precisamente nessa consciência que tem início o caminho da Sabedoria.

António Ambrósio

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