That was the river, this is the sea!

O refrão da música dos Waterboys, That was the river, this is the sea, traduzido para português como «Aquilo foi o rio, isto é o mar», surge como uma metáfora para pensar a vida não de forma linear, mas em fluxos, transformações e encontros inevitáveis com o desconhecido. O rio, na sua corrente delimitada, lembra-nos o percurso que seguimos quando acreditamos que há margens fixas e que o destino está traçado. O mar, por sua vez, rompe as fronteiras e abre um horizonte onde o previsível se dissolve, obrigando-nos a reaprender a viver.
Quantas vezes permanecemos demasiado tempo no leito de um rio? Acomodamo-nos ao som regular da água que corre, às curvas familiares do caminho, às margens que nos dão uma falsa sensação de segurança. O rio é reconfortante porque é estreito e controlável. Contudo, é também limitador, porque não nos permite ver além do que a corrente dita. É esse o perigo das rotinas rígidas, das certezas absolutas, das identidades que julgamos imutáveis. O rio representa a vida quando ainda acreditamos que podemos contê-la num mapa, numa lógica, numa sequência linear de acontecimentos.
Mas chega sempre o momento em que o rio encontra o mar, e nesse encontro há uma despedida implícita. O que foi já não volta a ser. Há também a compreensão de que o que parecia vasto e definitivo era apenas um prelúdio. O mar não limita a dimensão infinita da experiência humana. Não é um espaço de controlo, mas de abertura. Não é o lugar da segurança, mas da liberdade.
Traduzindo para a vida de cada um: quantas vezes sentimos que aquilo que nos definia já não nos serve? Quantas vezes o rio das antigas crenças, das antigas relações, dos antigos papéis sociais se torna demasiado estreito para a pessoa em que nos estamos a transformar? O mar surge, não como ameaça, mas como inevitabilidade. A verdadeira questão é se temos coragem para soltar o apego ao rio e lançar-nos ao desconhecido.
O mar é também metáfora da profundidade interior. Ao contrário do rio, que corre sempre no mesmo sentido, o mar permite silêncios e abismos. É um espaço que nos confronta com a pequenez, mas que nos dá igualmente a medida da grandeza da vida. Se o rio é a narrativa que contamos a nós próprios, o mar é o silêncio que existe para além da narrativa.
Não é fácil abandonar o rio. Há sempre nostalgia, medo, vontade de regressar às margens conhecidas. A tradução literal do refrão revela esse corte: «Aquilo foi o rio, isto é o mar». A vida não nos permite voltar atrás. Só podemos aprender a habitar o mar que agora nos envolve.
Mas será que estamos preparados para essa passagem? E se o mar nos engolir? E se nos perdermos sem mapa, sem margens? Talvez a questão não seja evitar o risco, mas aceitar que a existência é feita de ciclos de rios que correm de encontro ao mar. A cada fase da vida, a cada perda ou mudança, algo dentro de nós insiste em manter-se no rio, enquanto outra parte já não controla o chamamento do mar.
Talvez filosofar sobre a vida seja reconhecer este movimento: o que hoje é rio, amanhã será mar. O que hoje nos parece definitivo, amanhã será apenas memória. A canção lembra-nos que o fim de um percurso não é uma derrota, mas um começo.
Podemos perguntar-nos: em que ponto estamos nós? Ainda apegados ao rio, à sua corrente previsível, ou já no limiar do mar, prontos a deixar que as águas se confundam com o infinito? Talvez a resposta nunca seja definitiva. O importante é saber que, mais cedo ou mais tarde, a vida recorda-nos sempre: Aquilo foi o rio, isto é o mar.

António Ambrósio

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