O inverno já mexe os dedos dos pés, já lhe pressinto os espasmos involuntários, pois ele já começou a despertar. Não tarda muito está aí, vigoroso, rigoroso, imponente e incomodativo como só ele sabe e consegue ser.
O inverno enregela tudo e todos, é monótono, implacável e sem maneiras. Pessoalmente, antipatizo com ele. Não lhe acho graça. Os bons dias não lhos reconheço, tão-pouco lhos desejo de modo algum. Se tivesse meios..., antes dele começar a mexer os dedos dos pés, retirava-me para outro sítio, para o outro hemisfério, onde ele no final do cacimbo, já estivesse de malas aviadas para vir fazer as suas maldades no hemisfério norte. Fazia-o, não sem antes parar por um mês no Ilhéu das rolas, para regalar-me a ouvi-las arrulhar contínuos desejos de acasalamento.
Depois, quando mais a sul fosse franca a primavera, partiria para lá. Iria vestido com roupas leves, mas pesadamente coloridas: garridas nos vermelhos de descarada ousadia; nos verdes tons sorridentes; nos amarelos de sol a pique; nos azuis sem fim ou nos brancos dos dentes sem máculas de cáries e em todas as outras cores exageradamente abertas, alegres, encaloradas e saudavelmente vibrantes. Empanturraria-me de sons e de músicas tropicais, torridamente quentes, alegres, irrequietas e também de frutas doces de todas as cores e sabores.
Por lá, passaria horas apetecidas, descalço, debaixo do fresco das árvores frondosas, bamboleantes, nas suas ancas largas a dar a dar, vaidosas, a flertarem descaradamente com o vento por cima dos muros vizinhos, à vista dos pássaros incomodados a chilrearem protestos, para mim, maviososos cantares.
Daria sempre particular atenção às andorinhas e, assim que nelas começasse a notar alvoraçada inquietação, com elas partiria igualmente para norte, onde o inverno já deitado, molengo e enfraquecido, deixara, primeiramente, de se mexer dos pés à cabeça, num prenúncio de hibernação. Assim, desta expedita maneira nunca nos veríamos, tampouco teríamos de disfarçar a indiferença recíproca que nutrimos e, eu sem ele e ele sem mim muito bem passaríamos. Como bem suponho, ele diria que seria para o lado que melhor hibernaria...
Walter Ramalhete.
Figueira da Foz, 20 de Outubro de 2025.
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