Um Café em Paris num Dia de Chuva

A cidade parece suspensa entre o silêncio e o som suave da chuva. Paris acorda sob um véu cinzento, e os primeiros pingos de água, tímidos, deslizam pelos parapeitos das janelas, dissolvendo-se no chão das ruas, em pequenos charcos que espelham as luzes dos candeeiros ainda acesos. Sentei-me num pequeno café de esquina, daqueles que parecem ter ficado esquecidos no tempo, guardando nas paredes a memória de conversas, amores, tristezas e risos há muito passados. Os vidros das janelas, embaciados, desenham formas de vapor e, por entre a névoa, o movimento lento da rua e o compasso de guarda-chuvas que se abrem como flores negras sob um céu outonal.
Há, em tudo isto, uma melancolia serena, uma beleza que nasce precisamente da imperfeição do dia. O outono deixa o seu perfume agridoce no ar, misturado com o aroma quente do café acabado de moer e o cheiro reconfortante das torradas. Lá fora, as folhas caídas juntam-se em pequenos montes, pintando o passeio com tons de cobre e ouro gasto, como se o chão tivesse decidido refletir a luz que o céu recusa partilhar.
O empregado de mesa, de expressão distraída, serviu-me uma chávena de café fumegante e um croissant que parecia ter saído do forno nesse instante. O cheiro amanteigado misturou-se ao vapor do café e, por um momento, o mundo lá fora deixou de existir. Havia apenas o som da chuva a bater no toldo, o tilintar das chávenas e a quietude íntima que só Paris sabe oferecer nos seus dias chuvosos.
Lembrei-me então de um poema que, em tempos, escrevi, num outro outono, talvez num outro café, quem sabe neste mesmo lugar sem o reconhecer: «Disse-te Adeus num Dia de Chuva».
As palavras que escrevi regressaram com a mesma doçura distante com que regressam as recordações que já deixaram de doer. A felicidade, pensei, também se escreve assim: na nostalgia, nesse fio delicado que une o passado e o presente, revelando a fragilidade que nos torna humanos.
Paris é essa melodia discreta que se repete sem nunca se esgotar. É o eco de passos sobre as pedras molhadas, o reflexo das luzes nos charcos, o perfume das castanhas assadas que vem de longe. É um olhar trocado por acaso, um livro esquecido sobre uma mesa, um chapéu pousado num cabide. Em cada recanto há um fragmento de história, uma lembrança anónima, um amor proibido, uma promessa que o tempo não cumpriu. E é precisamente essa imperfeição, essa ausência de euforia, que dá à cidade o seu encanto intemporal.
Há quem diga que Paris é feita de monumentos, de avenidas largas e de museus imponentes. Eu creio que Paris vive, sobretudo, nestes instantes discretos, quando o quotidiano se mistura com a poesia. Vive no gesto de uma mulher que ajeita o lenço enquanto atravessa a rua, nos dias cinzentos, na conversa sussurrada entre dois desconhecidos que partilham uma mesa. Vive nas coisas pequenas, aquelas que quase passam despercebidas, mas que deixam uma marca invisível na nossa alma.
A chuva continua a cair, persistente, abafando o ruído da cidade e deixando apenas o essencial. Do outro lado do vidro, alguém lê um jornal que começa a desfazer-se nas bordas. Uma criança corre atrás das folhas que o vento faz dançar, uma mulher beija delicadamente um homem no rosto e eu, imóvel, senti uma estranha forma de alegria. Não aquela que irrompe em risos, mas a que se instala silenciosa, como um sussurro. A alegria de estar ali, presente, a viver aquele instante na sua plenitude frágil, e a recordação do poema: «Disse-te Adeus num Dia de Chuva».
Paris tem a arte de transformar a saudade em beleza. É o luxo da simplicidade, a elegância descontraída de quem não precisa de se explicar. Cada visita é uma revelação, cada esquina uma confidência. Talvez seja isso que me faz regressar, sempre, por vezes em pensamento, como quem procura algo que sabe não encontrar, mas que, ainda assim, precisa de procurar. Porque, no fundo, a felicidade talvez resida precisamente aí: na busca, na imperfeição, no instante fugaz em que o coração se reconhece no reflexo de um vidro embaciado num café de Paris num dia de chuva.

António Ambrósio

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