O Dia Internacional da Pessoa com Deficiência (3 de dezembro) não é uma celebração para a qual preparamos um cartaz com cores vivas. É uma convocatória urgente à reflexão que, para mim, enquanto professora de Educação Especial, ressoa de forma particularmente intensa. É o momento de olharmos para além da diferença individual e confrontarmos a deficiência da própria sociedade em que estamos inseridos.
Na nossa era, dominada por um consumismo voraz e por um individualismo frio, tornámo-nos mestres em evitar e condenar conceitos. Evitamos o termo deficiência por um conforto superficial ou por uma pretensa "correção política". Esta atitude, contudo, é a manifestação de uma crise ética mais profunda: a deficiência de valores de interajuda e respeito pelo próximo. O foco obsessivo no "eu" e na produtividade individual leva-nos a perder a capacidade de olhar para o "nós".
Enquanto professora de Educação Especial, a minha consciência grita ao ver o fosso entre o ideal e o real. O esforço que colocamos em sermos orientadores e facilitadores - acolhendo a imensidão da diversidade da própria sociedade e as necessidades individuais de cada aluno – choca diariamente com as limitações que a própria sociedade impõe. Ora, vejamos. Estamos rodeados de uma burocracia asfixiante. O tempo do professor, que deveria ser dedicado à diferenciação pedagógica e à presença plena junto dos alunos, é consumido por relatórios e burocracia. Assim, a escola atual, reflete a deficiência em planeamento e em confiança na administração central. Estamos rodeados de escassez de recursos: A falta de técnicos especializados (psicólogos, terapeutas, etc) e o rácio aluno/professor desadequado espelham a deficiência em investimento da sociedade. É por isso que Laborinho Lúcio tinha razão ao dizer: "Aos professores pode pedir-se muito. E pede-se. Mas não pode pedir-se tudo" (2021). Numa escola dita "inclusiva", a pressão para cumprir currículos leva, por vezes, ao isolamento dos alunos com necessidades mais complexas, que ficam a cargo de um professor ou assistente, em vez de estarem, verdadeiramente, integrados nas dinâmicas de grupo. A comunidade escolar, na qual eu me incluo, sobrecarregada, mostra-se deficiente em tempo e formação para as adequações curriculares e diferenciação pedagógica, no verdadeiro sentido da palavra . Contudo, diz-nos Sampaio da Nóvoa (2009) "A grande crise da educação é uma crise da sociedade, que se exprime na crise da escola. A escola não pode ser a muleta da sociedade, nem pode ser o lugar onde a sociedade deposita todas as suas incapacidades e todas as suas fragilidades.” Esta citação sublinha a ideia de que a escola é o espelho da sociedade e não deve ser sobrecarregada com responsabilidades que excedem as suas capacidades (como a burocracia excessiva e a falta de apoios na inclusão), pois isso é um reflexo das incapacidades e fragilidades da própria comunidade. Este autor reforça ainda a ideia de que que a escola não pode ser apenas um lugar de "serviço" individual, mas um espaço de compromisso ético (2025). A inclusão não é um favor concedido pela escola; é um direito humano que deve ser garantido pela sociedade.
Fora da escola, persiste a mentalidade de que a contratação de uma pessoa com deficiência é um "fardo" ou um "favor", e não uma mais-valia de diversidade. Muitas empresas continuam deficientes em visão estratégica.
O individualismo, traduz-se na escassez de empatia no espaço público e manifesta-se na falta de vontade de ceder prioridade ou na ocupação indevida de lugares reservados. A sociedade mostra-se deficiente em civismo e respeito pelo direito básico de participação do outro.
A verdade insofismável é que todos nós somos deficientes de alguma coisa. A falha está em não reconhecermos a nossa própria vulnerabilidade para valorizarmos a do outro. O problema mais grave é que a sociedade individualista se tornou deficiente de valores e princípios éticos de interajuda e respeito.
Se queremos honrar este dia, temos de começar por curar a nossa própria deficiência moral. Não é fugindo aos termos que construímos uma sociedade melhor, mas sim assumindo a nossa própria fragilidade e comprometendo-nos com a criação de um espaço onde o respeito incondicional seja o valor mais precioso. Que esta data nos capacite para assumir as nossas “deficiências” pois só assim seremos capazes de construir uma sociedade mais coerente com o que se “prega”, uma sociedade mais a sociedade mais alinhada com os ideais de respeito e equidade que (teoricamente) defende.
Lina Fernandes (Professora de Educação Especial do Quadro do Agrupamento de Escolas do Paião)
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