OPINIÃO: Um Tutor de IA para cada Aluno? Ou quando a modernidade serve para ocultar o essencial?

Cristina Loureiro

O Governo anunciou na Web Summit a intenção de atribuir um tutor de Inteligência Artificial (IA) a cada Aluno, apresentado esta medida como sinal de modernidade, eficiência e visão de futuro.
À primeira vista, a proposta pode parecer ousada. Mas quando observamos à lupa do bom senso e da realidade das Escolas Portuguesas, percebemos que estamos perante uma inversão profunda de prioridades- e isto é um contrassenso difícil de ignorar.
Na apresentação, o Ministro Adjunto e da Reforma do Estado afirmou: “Este é o nosso momento para imaginar o que um Estado pode ser: inteligente, dinâmico e centrado nas pessoas.” A frase é poderosa, contudo, é incoerente quando confrontada com a própria medida proposta, porque um Estado verdadeiramente centrado nas pessoas não delega a função mais humana de todas- ouvir, orientar e inspirar a aprendizagem- a um algoritmo.
Os mais atentos perceberão muito rápida e facilmente que esta é uma resposta que está a ser trabalhada para colmatar a falta de Professores nas Escolas – porque um passo levará ao outro. Porque a lógica é simples e previsível: perante a ausência de Professores no Ensino, a aposentação acelerada e a renovação não proporcional e a formação de Professores em queda, primeiro apresenta-se a ideia como um complemento (não substitui Professores, mas complementa o trabalho destes). De seguida, quando a falta de Professores agravar ainda mais (como irá acontecer), o Tutor de IA irá assumir funções que antes eram humanas, como apoiar Alunos que ficam sem aulas, e por fim, irá normalizar-se a substituição: não há tecnologia suficiente, mas há tecnologia para assumir a continuidade pedagógica.
O Governo pretende que o Tutor de IA faça parte da construção de um Estado mais “rápido, responsivo e inteligente”, mas a inteligência- a verdadeira- nasce da capacidade de reconhecer a realidade:

- Há Escolas sem aumento de financiamento desde 2009;
- Há turmas de 28 e 29 Alunos, impossíveis de personalizar;
- Há Professores em falta em várias disciplinas nucleares;
- Há Alunos sem aulas estruturadas durante meses;
- Há Professores exaustos e desvalorizados.

Ora, perante este contexto, propor um Tutor de IA é quase surreal. É tentar sofisticar o topo do bolo quando a base está presa por pinças! É confundir tecnologia com transformação! É apresentar uma promessa tecnológica enquanto os problemas essenciais continuam intactos, sem que ninguém deste Governo se digne, sequer, a olhar para eles.

Como é que um Tutor de IA ia saber como lidar com Crianças com dislexia, PHDA e autismo? O Governo promete um produto irrealista que, se não for integrado num sistema humano robusto, como Professores com formação em Neurociência aplicada ao Ensino e à Aprendizagem, que saibam como é que o cérebro (ou cada cérebro) aprende, vai resultar num investimento perigosamente desviante das novas gerações.
Recentemente, foi divulgada a notícia de um jovem com 16 anos, Adam Raine, que cometeu o suicídio. Segundo a queixa apresentada pela família contra a empresa Open AI, o jovem usou o ChatGPT por meses para desabafar sobre o seu sofrimento psicológico. Alega-se que o bot não só falhou em desencorajar a ideação suicida, como ainda facultou instruções ao jovem para redigir notas de suicídio.

Não sejamos ingénuos: A IA não substitui a advocacia emocional, o acompanhamento psicológico nem a supervisão adulta; a IA não tem uma supervisão real em relação ao bem-estar e não é uma substituta de uma presença humana real que falta a muitos jovens.

Portugal tem 122 mil Professores no activo. Porque não dar-lhes formação sólida em Neurociência aplicada ao Ensino e à Aprendizagem, reforçar o apoio psicopedagógico (praticamente inexistente) e reduzir desigualdades? Por que não reduzir as turmas de 29 Alunos para cerca de 20 Alunos, como acontece na Finlândia, na Noruega, na Suécia, na Dinamarca, na Holanda, na Bélgica, no Luxemburgo, na Áustria, na Estónia, na Irlanda? Nestes países os indicadores de aprendizagem e bem-estar são superiores.

O que transforma uma Escola não é um assistente digital. É um Professor valorizado, presente, preparado. É uma turma com um número reduzido de Alunos. É um financiamento adequado e justo.

Parece-me também legítimo questionar se o anúncio deste Tutor de IA serve também para desviar a atenção de outro dado incontornável: as Escolas particulares e cooperativas que integram a rede pública continuam a apresentar melhores resultados nas Provas Nacionais, ano após ano, enquanto aguardam, há largos anos, um aumento de verba essencial para garantir equidade. É difícil não estranhar o timing. E é mais difícil ainda não perguntar: como pode um Estado dizer-se centrado nas pessoas se não investe nas pessoas que educam?

Se este Governo quer realmente ser “inteligente, dinâmico e centrado nas pessoas”, tem que começar pelo que a Ciência já comprovou: investir em Professores, em turmas menores, em formação emocional, em apoio psicopedagógico, em financiamento justo e em políticas que devolvam a dignidade a quem sustenta o futuro: as Crianças e os Educadores. E já agora, porque não responder às centenas de missivas que lhes chegaram de várias Escolas nacionais? Ou ignorar as Escolas é sinónimo de inteligência para este Governo?
Tudo o resto é distracção, e, neste momento da história, não temos tempo para distracções duvidosas. Se o povo hoje voltasse às urnas, este Governo não teria o resultado que obteve a 2 de abril de 2024 nem a 5 de junho de 2025.

Cristina Loureiro
Direcção Geral e Pedagógica do CMDS
Especialização em Neurociência aplicada ao Ensino e em Neurociência aplicada às Pessoas e às Organizações

COMENTÁRIOS

ou registe-se gratuitamente para comentar.
Critérios de publicação
Caracteres restantes: 500

mais

QUEM SOMOS

O «Figueira Na Hora» é um órgão de comunicação social devidamente registado na ERC (Entidade Reguladora para a Comunicação Social). Encontra-se em pleno funcionamento desde abril de 2013, tendo como ponto fulcral da sua actividade as plataformas digitais e redes sociais na Internet.

CONTACTOS

967 249 166 (redacção)

geral@figueiranahora.com

design by ID PORTUGAL