INTIMISSIMIDADES!

Esta palavra não existe senão no meu vocabulário pessoal, é-me imaginária, privada, privadíssima. É uma palavra quase secreta que uso somente nas falas de mim comigo, de mim em mim, de mim para mim, naquelas falas ainda sem existência exterior, nas que existem só no meu silêncio, nos pensamentos dentro de mim. Uso-a somente naquelas minhas conversas sem voz audível fora de mim, uso-a comigo no meu silêncio. Em suma, foi até hoje silenciosa.
É-me uma palavra importantíssima, mas que viveu abafada dentro de mim, e que só agora conheceu o seu som e a sua outra vida lá fora. Só agora conheceu o sabor da tinta e o conforto da prisão do papel na sua cor sem grades, sem paredes e sem grilhões.
Ela só agora começou a conhecer o mundo e a vida noutras bocas, nos outros contextos, dentro e fora dos textos. Enfim, ela só agora nasceu para fora de mim. Se ela me sobreviverá, se vingará lá fora, somente o tempo dirá.
As intimissimidades ocorrem-me com maior frequência naquelas horas da madrugada em que eu começo a acordar-me sem querer ainda acordar o dia. Habitualmente acontecem-me entre as três e as cinco horas.
Acordo-me, ou acordam-me os pequenos movimentos dos pés e das mãos. Com eles, ideias ainda enevoadas, parecidas com miragens frias e tremelicantes pairam, balançam no meu cérebro, ainda sem firmeza, ainda sem intimissimidades, porque ainda não são minhas.
Entretanto a minha rua dorme profundamente, coberta por um silêncio cerrado, nem as folhas bulem. Chego a acreditar que até o silêncio, de tão profundo, dorme abrigado num qualquer recanto dela.
Frequentemente, sou eu que costumo acordar a minha rua. Não o faço por mal, acontece porque não consigo ficar imóvel por muito tempo. Ela até tem bom feitio, tem boa boca - como é comum ouvir-se dizer de quem é tolerante - porém ela tem o sono muito leve, e por isso sei que dou-lhe más noites. Mexendo-me, não a deixo descansar quanto necessita.
Depois de me começar a mexer, assaltam-me os primeiros pensamentos, lindos leves e frágeis como as bolas de sabão. Esses desvanecem-se num sopro, não os consigo reter, derretem-se no ar, somem-se tão depressa como me vieram. Esses caem no vazio, no negro sem fundo onde a memória não penetra. Outros, outros e outros mais vêm em contínua catadupa, desligados, sem consistência, dispersos, curtos, abobalhados e também ainda embicados ao esquecimento.
Por fim já melhor desperto, procuro as horas no meu pulso porque nas redondezas não existe relógio que as ressoe batidas numa apropriada torre. Sendo cedo para acordá-la e cedo para me forçar a adormecer, aquieto o corpo, mas os meus pensamentos não. Já vão altos. Imparáveis. Quais papagaios contorcidos pelos caprichos dos ventos sem corpo nem cor, presos à terra pelos cordéis atados nos dedinhos sonhadores das crianças que os seguem com os olhares encantados.
Trazem-me as intimissimidades, as tais intimidades intimissíssimas, dizia, essas trazem-me espantos e muitas ideias. Algumas desconhecidas, outras conhecidas, umas atrasadas e outras retrasadas, bafientas, envoltas nas cores desgastadas dos remorsos. Há delas eloquentes, há delas enfadonhas e, nas puras intimissimidades há-as daquelas às quais digo:
- Nem pensem! E bato-lhes estrondosamente com a porta na cara. Doutras, fujo a olhar para trás por cima do ombro, ora à esquerda, ora à direita e ao contrário também. Há-as fechadas em quartos de escuridão impenetrável, de cujas portas nunca me aproximarei sequer.
- Quem as não tem?
Como é cedo para acordá-lo fico quieto, sem me forçar a adormecer. Já os pensamentos me vão altos, irrequietos, vão sobre tudo e sobre nada, apenas vão no balanço do vento que os sustenta e cuida melhor do que eu. Vão sem me darem pena nem cuidados, mas... a pouco e pouco ... como a prometida aurora vão-se fazendo certeza, acertando-se, ganhando firmeza, clareando-se, futurando esperanças ou passando-as a passado, passando-se a memórias, a saudades, inventando necessidades para me preencherem o resto do tempo que me consome a noite, enquanto retardo o dia a despertar-me.
Depois, horas mais tarde, o dia agradecido, quase já desperto, volta a adormecer-me. Aconchega-me as cobertas já curtas do exíguo restante da noite. Ele aconchega-me carinhosamente na memória os pensamentos, ideias, palavras, frases, versos, sons e tudo o que me veio, não sei donde, e que mais logo, ou num qualquer outro dia partilharei.
Mas, nem sempre é assim. Raramente, felizmente, acordo agitado, apavorado, com o coração a bater-me junto da boca. Raramente acordo dum sonho horroroso. Raramente acordo sem maneiras a noite, encolhendo, esticando, batendo com os pés e as mãos, sobressaltando-a também. Quando assim acontece, acordo com os pesadelos. Esses sonhos, esses despertares, essas intimissimidades são para esquecer rapidamente. Credo! Lagarto, lagarto! Truz, truz, truz! Cruz, canhoto!!!

Walter Ramalhete.
Figueira da Foz, 13 de Dezembro de 2025.
Este texto foi escrito nos termos ortográficos anteriores ao actual (Des) Acordo ortográfico. Reservados todos os direitos de autor.

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